Os Guarani Kaiowa estão sendo mortos e a sociedade brasileira não reage a tais violências. Luciana de Oliveira analisa essa situação e vê na força dos imaginários sociais constituídos em torno dos índios no Brasil uma chave de leitura que pode ajudar a compreender os motivos que nos levam a não enxergar esses acontecimentos.
Conheci Damiana Cabaña em janeiro de 2013. Desde o primeiro momento, me impressionou sua determinação na luta pela terra que protagoniza junto com outras lideranças Guarani Kaiowa no Mato Grosso do Sul. Naquela época, eu visitava tekohas* e acampamentos e vi em Apikay, onde mora Damiana, um acampamento de cinco casas aproximadamente, na beira da BR 463, uma das situações mais graves de violação aos direitos humanos que meus olhos puderam testemunhar. Depois disso, muito descobri sobre ela: teve o marido, dois filhos, netos e outros parentes mortos por atropelamento totalizando seis pessoas. Desde 2009, foram 8 mortes por atropelamento na BR 463 entre os quilômetros 03 e 08. Em 14 de março de 2014, mais uma morte trágica: a vítima foi Ramão Araújo de 41 anos, kaiowa que estava residindo em Apikay para apoiar a luta de Damiana e sua família na retomada de suas terras. Recebi a notícia via e-mail que me foi enviado por Tonico Benites, kaiowa, antropólogo, liderança da Aty Guasu. A notícia circulou nas redes sociais.
Mais terrível ainda é pensar que o caso de Damiana não é isolado. Os Guarani Kaiowa, 2º maior povo indígena em número de população no Brasil, aproximadamente 43.000 pessoas, estão sendo mortos. Sim, é preciso empregar bem o verbo: eles não estão morrendo, alguém os mata. Acuados pela ameaça de morte constante, eles enfrentam toda sorte de injustiças. A principal é o assassinato impune de importantes líderes, intelectuais e rezadores que historicamente lutaram por seus direitos, principalmente o da demarcação de suas terras tradicionais de modo a garantir a preservação de seu modo de vida, o que significa também um trabalho de preservação de tecnologias de cultivo e de biodiversidade (de grãos, hortaliças, leguminosas, plantas medicinais). São recorrentes ainda ordens de despejo, ameaças de morte, torturas, sequestros, estupros e outras agressões.
As forças opressoras aos povos Guarani e Kaiowá são poderosas do ponto de vista político, econômico e simbólico. O estado de Mato Grosso do Sul concentra um conjunto de atividades produtivas no segmento do agronegócio que têm lhe garantido um crescimento econômico vertiginoso, mas acompanhado da destruição de seu patrimônio natural e humano. Dentre as forças poderosas estão fazendeiros de commodities como a soja, o gado, a madeira de eucalipto e a cana, e suas associações de interesses, empresas multinacionais do ramo de papel e celulose, açúcar e etanol, extração mineral que atuam por meio do lobby e de pressões sobre os poderes do Estado de modo a garantir condições para sua expansão desenfreada. O rastro de destruição ambiental deixado pela atuação econômica salta aos olhos. A paisagem parece desértica. As imensas extensões de terras desmatadas oprimem as retinas, o cheiro do refugo das usinas de etanol invade perigosamente o olfato e, de modo invisível, os pesticidas e químicos usados para “proteger” as lavouras, contaminam os rios e a saúde daqueles que dependem dessa água. Mas não é só o mercado que atua de forma opressora. O Estado também. Seja pela omissão, seja pela atuação equivocada. O abandono e a falta de expectativas têm gerado um dos maiores números de suicídios na população Kaiowa. Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena-MS essa taxa é de 62,01/100.000, considerando-se as 45 ocorrências de suicídios em 2011. Para a Organização Mundial da Saúde, um índice de 12,5 mortes por 100.000 pessoas já é considerado muito alto.
Por que o genocídio indígena é um acontecimento que não acontece cotidiana e midiaticamente? No pensamento de William James, filósofo do pragmatismo, há uma interessante asserção sobre como conhecemos o mundo ou sobre como se forma a realidade para nós. A realidade é uma relação, resultado do que acontece no contato de nossa mente cognoscente alimentada pelas sensações e sensibilidades com os objetos do mundo – que podem ser objetos físicos concretos e exteriores e também objetos de pensamentos já formados pelas experiências pretéritas. A força dos imaginários sociais constituídos em torno dos índios no Brasil parece atuar aí de forma decisiva: pensá-los como cooptados, passivos, alienados, selvagens, insignificantes em número ou qualidades e, nos piores casos, inexistentes impedem muitas vezes que possamos enxergar esses acontecimentos ou, como audiência, torná-los acontecimentos. Uma exceção, muito importante politicamente, parece ter ocorrido no final de 2012 quando uma carta da tekoha Pyellito Kue/Mbarakay chamou a atenção da opinião pública nacional e internacional por um erro: a mídia chamou a morte coletiva que eles anunciavam de suicídio coletivo e esse elemento parece ter caído no gosto (ou desgosto) das pessoas que rapidamente aderiram a uma campanha na rede social Facebook, utilizando o sobrenome guarani kaiowa, bem como participando de protestos nas ruas e fóruns de discussão sobre o assunto. Sem dúvida, a noção de suicídio coletivo diz mais sobre nós do que sobre eles e enquanto assim o for essa situação de genocídio não será assumida nem em discurso nem em ação. Eles continuarão sendo mortos e, nós, morreremos (nos suicidaremos?), um pouco a cada dia como pessoas e como sociedade.
*Tekohas: O lugar onde se pode viver o teko, o modo de vida Guarani. O território do bom viver, onde se pode estar acompanhado pelos antepassados que conectam os vivos à terra; onde se pode rezar a Ñanderu, divindade suprema e conexão com o céu; onde se pode plantar e colher, receber as crianças que nascem para a continuidade da vida.
Referência:
Ver “Introdução” e “A teoria da verdade de James”. In: PUTNAM, Ruth A. (org.). William James. Aparecida: ideias e letras, 2010.
Luciana de Oliveira
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG
Maravilhosas observações de Luciana e Vera. Ao nos debruçarmos e narrarmos a respeito dos invisíveis sociais podemos produzir “novo fôlego” interpretativo sobre o desaparecimento eminente destas coletividades. Acho que a morte de indígenas reflete o próprio desaparecimento de alguns coletivos pobres no social (ninguém fala dos mendigos, dos sem teto, dos haitianos que pedem abrigo no país, dos jovens de contextos pobres no rural sem rumo na cidade, etc). Estamos sempre deixando desaparecer ou fazendo aparecer estes sujeitos, mesmo que apenas em nossas narrativas acadêmicas. Contudo, acho que todo o desaparecimento provoca condições para o lento surgimento de um tipo de acontecimento que, à princípio, não teria conexões com os sujeitos invisíveis, mas aos poucos, analisando o que aconteceu, podemos entender que determinado tipo de acontecimento (que rompe com a normalidade) possui ramificações com a situação social, simbólica e cultural vivida por estas pessoas. Os fenômenos estão aí na vida vivida, mas parece que ninguém gostaria de falar deles. São “fenômenos mudos” (só vívidos pelas narrativas) que parecem refletir um certo clamor calado de sujeitos perdidos que já não sabem o que dizer ou fazer, vão se arranjando do jeito que podem no cotidiano, no seu entremeio social (entre mundos, desejos que não são seus, expectativas despedaçadas, emoções que buscam fôlego), sem entender muito bem as coisas no turbilho das transformações.
Embora já soubesse do episódio relatado pela Luciana, fiquei mais uma vez emocionada ao lê-lo – pois a narrativa torna-o presente novamente. Conforme Quéré, ao narrar, inscrevemos o acontecimento em uma segunda vida (ou uma terceira, uma quarta…), e os novos enquadramentos convocam e atualizam sentidos. Mas o que eu queria comentar era em que medida a morte de indígenas constitui um acontecimento; afinal, eles vêm sendo mortos há séculos, e isto não parece romper a normalidade e se instaurar como uma ruptura. Então, talvez o acontecimento agora seja o fato de que (finalmente) essa ocorrência comece a ter ecos – e, pelo menos junto a alguns públicos, se tornar um acontecimento. As razões dessa mudança, sabemos, não são externas a ele, mas dizem tanto do passado que ele evoca como dos horizontes que ele descortina. Esse passado é o nosso; ao olhar para os povos indígenas que (continuando a serem dizimados, e numa correlação de forças absolutamente desigual) buscam de alguma forma se organizar para resgatar sua identidade e escolher seu futuro, não estamos nos sensibilizando apenas com um “outro” que queremos proteger. Começamos a nos dar conta do quanto neles se inscreve, não nossos antepassados, mas parte de nossa humanidade. E o horizonte que tanto o genocídio como a resistência deixam entrever diz da possibilidade de deixar morrer – ou fazer viver – uma forma outra de estar no mundo.
Vera França
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do Gris/UFMG