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O violento ataque do “direito às armas”

Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro, em janeiro de 2019, foi a flexibilização do Estatuto do Desarmamento, que regula a compra, a posse e o porte de armas de fogo no país. No primeiro ano da facilitação do registro de armas, tivemos um recorde no número de armas registradas por civis: 191 mil. Já no primeiro semestre de 2020, os números combinados de armas registradas pela Polícia Federal e Forças Armadas chegaram a 72% da quantidade do ano passado inteiro: cerca de 140 mil.
De que “mal” o armamento doméstico nos protege e qual a lógica da “defesa” que esse acontecimento e a reivindicação de “direito às armas” nos ilustram?

Em 2003, o Estatuto do Desarmamento entra em vigor no Brasil, na tentativa de coibir a posse e regular o porte de armas, e reduzir a alta taxa de homicídios por armas de fogo, vendidas sem muita burocracia no Brasil. A implementação do documento também propôs um referendo, realizado dois anos depois, que pedia à população votar “sim” ou “não” para a proibição do comércio de armas. Em agosto de 2005, 80% dos entrevistados de uma pesquisa do Datafolha afirmaram ser favoráveis a proibição do comércio de armas. No entanto, possivelmente por conta da campanha ostensiva da bancada armamentista, o resultado do referendo, dois meses depois, foi outro: 63% dos brasileiros votaram em favor da legalização do comércio de armas.

O debate armamentista retorna à cena pública em 2018 e 2019, com a eleição de Bolsonaro, sua família pró-armas e com as diversas tentativas de flexibilização do Estatuto. Nos últimos dois anos, decretos permitiram novas facilidades para que os entusiastas civis pudessem adquirir mais armas, de calibre mais potente, e mais munição, por mais tempo. Os conhecidos como CACs (nome do registro das Forças Armadas para “Colecionador, Atirador e Caçador”) são civis que agora podem ter até 60 armas, 180 mil munições, durante um registro de dez anos (antes da flexibilização do Estatuto, limitava-se a 16 armas, 60 mil munições e um registro de cinco anos). Outra mudança fundamental é que, agora, eles também podem andar munidos na rua.

Bolsonaro, para além das recentes alterações na lei, já fez diversas afirmações sobre “o direito” de possuir armas. Na controversa reunião de ministérios de 22 de abril deste ano, divulgada publicamente, afirmou para seu ex-Ministro da Justiça que queria “todo mundo armado”, e que isso seria “a garantia de que não vai ter um filho da puta aparecer [sic] para impor uma ditadura aqui”. Recentemente, prometeu novas flexibilizações na posse e porte de armas, considerando que ainda parece haver insatisfação dos entusiastas armamentistas. Contra quem estamos apontando essas armas, e contra o quê nos “protegemos”, armados?

Aqui, vale uma incursão teórica: Vladimir Safatle nos lembra que o desamparo é uma posição irrecusável do sujeito social contemporâneo, que se encontra em uma angustiante impotência diante do mundo. O que a pessoa faz com esse desamparo, no entanto, diz da sua potencialidade como sujeito político: ela pode afirmar e se reconhecer nesse afeto, o que, na literatura freudiana, seria um passo para a emancipação; ou ela pode negar essa posição “fraca” e transformar esse afeto em medo.

A produção do medo, para o filósofo, constrói uma organização política bastante comum hoje, onde a sociedade é entendida “como corpo tendencialmente paranoico, preso à lógica securitária do que deve se imunizar contra toda violência que coloca em risco o princípio unitário da vida social”*¹. A lógica da “defesa de si”, central à retórica dos armamentistas brasileiros, parece exigir, no entanto, uma inversão da violência, como descreve Judith Butler*²: a “defesa” de um “nós” contra “outros” pode escapar facilmente de seus contornos pacíficos de “proteção” e se tornar, ela mesma, um investimento violento, antecipado e legitimado frente àqueles que não reconheço como meus iguais. A arma de fogo, cuja lógica é a da mira, do ferimento, da morte, aparece como a promessa pacificada de “escudo” – o que, definitivamente, ela não é. Basta retornarmos a uma pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), alguns anos antes do Estatuto, que indicava que uma pessoa portando uma arma tem 56% mais chance de ser morta em um assalto armado.

Portanto, o “retorno” da retórica e da agenda armamentista deve ser compreendido não só na sua articulação na política institucional, mas no próprio “refúgio” imaginário que a arma produz nos sujeitos que a procuram. Como nomear o desamparo do sujeito que, mesmo sem pretender gastar os R$ 4 mil na compra de uma arma de fogo legal, adere à reinvindicação pelo direito de possuir uma? Contra quem se elabora uma identidade “ameaçada” e que precisa ser “defendida” nos dias de hoje – e contra quem é feito esse ataque violento, outorgado pela retórica da defesa de si?

Essas são perguntas fundamentais para que possamos compreender o modo como o “problema” do armamento se articula no mundo contemporâneo, alimentado pelo medo, onde sujeitos, insistentemente negando seu desamparo constitutivo – um afeto que pode abrir para novas formas de estar e de agir no mundo – se entregam às fantasias armamentistas de poder completo.

SAFATLE, Vladmir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 20.
BUTLER, Judith. The force of non-violence: an ethico-political bind. Nova Iorque: Verso Books, 2020.

Lucas Afonso Sepulveda, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG



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