Análise | Diário da Quarentena Morte Questões raciais

As violências da desigualdade na pandemia

Neste artigo, discutimos como as desigualdades sociais afetam as condições de saúde e acesso à assistência médica, evidenciando como a população negra empobrecida é mais vulnerável à contaminação e morte por Covid-19.

Ilustração: Axel Sande

No início da pandemia, milionários paraenses e mato-grossenses inauguraram uma prática que se tornou recorrente: contaminados por Covid-19, viajaram em jatinhos particulares à São Paulo para se tratarem e fugirem da lotação das UTIs nas suas regiões de origem. Acompanhamos – cada vez com mais ansiedade – o aumento do número de casos de pessoas contaminadas por Covid-19 e a crescente lotação dos leitos de UTI naqueles estados e por todo o país.

Em meio a essa tensão, há outro fator que não podemos esquecer: a distribuição territorial de leitos de UTI – assim como de hospitais – é assimétrica no Brasil: menos de 10% dos municípios brasileiros tem leitos de UTI e a maioria deles se concentra na região Sudeste. Além disso, a distribuição geográfica do acesso à saúde nas grandes cidades também possui desigualdades. Por exemplo, em São Paulo, as sub-prefeituras Sé, Pinheiros e Vila Mariana, situadas nas regiões mais ricas da cidade, concentram 60% dos leitos de UTI do SUS da cidade.

Em paralelo a essa restrição do acesso à saúde, temos ainda dados alarmantes: desde maio deste ano, quando se tornou obrigatória a inclusão das categorias cor e raça no mapeamento das contaminações e mortes por Covid-19 no Brasil, ficou evidente que a população negra e empobrecida é a mais afetada. Em Minas Gerais, a população negra representa 42% das mortes e 48% dos contaminados. Já na cidade de São Paulo, conforme dados divulgados esse mês, regiões pobres, com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre 0,63 e 0,73, tem prevalência de 14% dos casos; já aquelas com alto IDH, entre 0,84 e 0,95, o índice é de 6,2%.  Além disso, a população de pretos e pardos é a mais atingida, com 15,1% de prevalência diante dos 7,5% entre os brancos. Surpreendeu também o alto índice entre os desempregados, alcançando 18%, enquanto aqueles que saem para trabalhar somam 11,9%. A população mais protegida é aquela que mantém as atividades de trabalho remotas, com prevalência de 4,4%.

Esses dados nos mostram um cenário excludente: a população mais rica, mesmo em caso de lotação dos leitos do SUS em suas cidades ou regiões, continua acessando os melhores recursos médicos porque controlam os fluxos da rede privada e também podem se deslocar para outros estados e garantir tratamento. Já as populações com menor renda, além de se verem mais expostas à contaminação pelas necessidades de trabalho, dependem da disponibilidade de recursos do SUS que, depois de sucessivos cortes públicos, encontra-se fragilizado e sobrecarregado diante da demanda ampliada imposta pela pandemia.

O fato de o Brasil ser o segundo país em número de mortos no mundo não se deve somente ao descontrole na transmissão da doença, mas também às desigualdades sociais que assolam o país. A vinculação entre poder aquisitivo e acesso à saúde, ainda que naturalizada socialmente, deve ser objeto de crítica e reflexão: ela reflete o menosprezo pela vida. Essa nefasta monetização é resultado do racismo estrutural e dos sucessivos processos de desumanização e precarização da vida da população negra e empobrecida do Brasil, que se vê mais exposta à contaminação e com menos assistência à saúde. Enquanto a vida for passível de valorização financeira – na qual algumas pessoas são expostas ao risco de morte por conta das vulnerabilidades econômicas e sociais – não teremos uma sociedade digna e verdadeiramente humana.

Denise Prado, Doutora em Comunicação pela UFMG, professora da UFOP e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Interações Sociais – Giro



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