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Quando o tempo é inimigo da vacina

No final de outubro de 2020, a controvérsia entre Jair Bolsonaro e João Dória em torno da compra da vacina contra o coronavírus produzida na China – a CoronaVac – ganhou as manchetes jornalísticas e as redes sociais.

Charge: Nando Motta / @desenhosdonando

O acontecimento envolveu uma sequência de episódios, que começam na tratativa do Ministério da Saúde com o Instituto Butantan e o Governo de São Paulo, autorizando a aquisição de 46 milhões de doses do medicamento chinês, e seguiu dias a fio em meio a discussões entre o presidente e o governador paulista, além de uma espécie de humilhação pública do Ministro da Saúde. Sobrou para o Supremo Tribunal Federal (STF), que acolheu protestos de sete partidos e proferiu, entre as solicitações, sentença a favor da possibilidade de exigência da vacinação coletiva pelo Estado.

No começo de novembro, o Governo Federal, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), recorreu de um pedido de esclarecimento feito pelo Ministro Ricardo Lewandowski a partir de duas ações de partidos de oposição que exigiam a compra da CoronaVac. Segundo a AGU, o Governo não pode se comprometer a adquirir um medicamento cuja eficácia ainda não foi comprovada pelos órgãos reguladores nacionais. Há uma contradição no argumento, já que Bolsonaro assinou uma Medida Provisória (MP), em agosto de 2020, liberando R$ 1,9 bilhão para a compra (incluindo produção e distribuição) de 100 milhões de doses da vacina que está sendo desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com o conglomerado farmacêutico anglo-sueco Astrazeneca e, no Brasil, com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Nesta briga sem fim, fruto da politização polarizada da pandemia em nível nacional e internacional, como se observa, perdem muitos. Ou, melhor dizendo, perdem todos. Ecoa um misto de disputas personalistas e teorias da conspiração, cujo horizonte apenas leva para mais uma vitória imperiosa da desinformação e da morte. O que não é, também, uma novidade, como vem advertindo a Organização Mundial da Saúde durante os últimos meses. No entanto, a perda de vidas, mais que o resultado de ações inconsequentes e debates irresponsáveis, passa a revelar também projetos indiretos de gestão mórbida sobre a doença e a crise sanitária. E carrega uma temporalidade mais alargada, na qual a pandemia se torna uma espécie de explicitação da catástrofe.

Se o Brasil, há anos, era considerado referência mundial em vacinação, o negacionismo gratuito em torno da vacina contra o novo coronavírus joga luz sobre um processo gradual de transformação de valores e perspectivas em torno da ciência. Na década de 1970, a criação do Plano Nacional de Imunização (PNI) e, anos depois, o seu aprimoramento com a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, fez com que o país não apenas atingisse índices de vacinação de grande alcance populacional, como gerou uma cultura de imunização independentemente de classe e região geográfica. Para um país de extensões continentais e grande desigualdade social, trata-se de enorme feito

De origem muito anterior ao PNI, os centenários Fiocruz (1900) e o Instituto Butantan (1901) são representantes da vocação brasileira para o tratamento de doenças infectocontagiosas. A longevidade e legitimidade dessas instituições, porém, parecem ir na contramão do tempo, como se todo o cabedal de conhecimento que as sustentam, bem como os seus respectivos percursos históricos, de nada valessem em constantes e atuais diálogos ignorantes que permeiam a opinião pública sobre a saúde coletiva e os constantes desinvestimentos governamentais na pesquisa científica. Um equívoco.

É esta a encruzilhada que deve ser observada e problematizada. A solução para o duelo em torno da “vacina que ainda não existe” passa pelo resgate obrigatório do valor da ciência e de sua presença em meio a uma cultura cidadã, que parece ter se distanciado do cotidiano. Décadas de campanhas de imunização no Brasil, tensionadas com a queda recente nos índices de vacinação, necessitam do (re)encontro com uma obviedade: a vida em sociedade é comunitária e não individual, e nosso processo civilizatório tem muito mais a ver com maturidade e políticas públicas reais do que com arroubos políticos infantis e puramente ideológicos. Há o tempo da produção de uma vacina, mas há o tempo mais amplo, da relação social com ela. A saída da pandemia passa, por isso, pelas pazes com o tempo histórico e a ética. É esse o novo normal que deve acompanhar a propalada e simbólica cura injetável e sua aceitação.

Frederico Tavares, professor da UFOP e pesquisador do Giro – Grupo de Pesquisa em Mídia e Interações Sociais



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