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Governo Militar: as ligações entre o Planalto e os porões da ditadura

“Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”, afirmou o general Geisel. Documentos divulgados pela CIA confirmam não apenas as mortes no período da ditadura, mas a ligação entre os centros de extermínio, o palácio do Planalto (Geisel) e órgãos de segurança americana.

Ernesto Geisel e João Figueiredo, dois últimos ditadores do Brasil. Foto: Orlando Brito / Agência O Globo.

O professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, Matias Spektor, divulgou no dia 11 de maio deste ano um memorando do então diretor da CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) William Colby, dirigido ao secretário de Estado americano, Henry Kissinger, no qual ele relatava um encontro do general Ernesto Geisel, recém-empossado presidente da República, com o general Figueiredo, então chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e mais dois generais do Centro de Inteligência do Exército (CIE) – Milton Tavares e Confúcio Avelino. Esse documento era datado de 11 de abril de 1974 e foi tornado público recentemente pelo governo americano.

Conforme o documento, o general Milton Tavares se referia à necessidade de continuar se resguardando da “ameaça terrorista e subversiva” e, para isto, os métodos “extra-legais deveriam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”. Relata ainda que, no ano anterior, 1973 (governo Médici), 104 pessoas “nesta categoria” tinham sido sumariamente executadas pelo Centro de Inteligência do Exército. [1]

Nessa conversa, Geisel, mais do que estar sendo informado, manifesta sua concordância com a continuação do método – apenas fazendo a ressalva de que os assassinatos só ocorressem em “casos excepcionais”, envolvendo “subversivos perigosos” [2]. E de que o Planalto deveria continuar sendo informado, buscando coibir um pouco a autonomia do CIE.

A existência dos assassinatos no período da ditadura é fato reconhecido por todos, e as mortes e torturas, envolvendo inclusive crianças, foram expostas com detalhes através de depoimentos estarrecedores levantados pela Comissão Nacional da Verdade. Crimes, é preciso lembrar, que não foram punidos – e sequer divulgados amplamente junto à sociedade.

A relevância deste acontecimento (a divulgação do memorando da CIA), assim, não se deve à novidade das informações, mas a outros aspectos. Primeiramente, é a própria figura de Geisel que é vista em seus contornos; em contraste com Médici e com os anos mais duros da ditadura, e associado ao início da “abertura lenta e gradual”, ele era tido como um general de linha mais amena. O que o documento prova é que os porões da ditadura se mantinham em linha direta com o Planalto – e que execução era a arma adotada para lidar com os opositores do regime. Sua frase, relatada por Elio Gaspari em seus livros sobre a ditadura [3], é bastante elucidativa: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”. [4]

O segundo aspecto é a ligação direta também com a CIA e com os comandos americanos. Quem relatou a reunião, quem era o “infiltrado” que passou as informações para Colby? O informante da CIA estava ali, na reunião dos quatro generais.

Nesse momento de caos político, econômico e social vivido pelo Brasil, a bandeira da intervenção militar vem sendo levantada por muitos desavisados, que minimizam a ditadura, falam em período de calma e segurança e justificam as execuções como sendo de “uns poucos subversivos”.

Esse documento é uma peça importante para nos fazer refletir sobre o significado de uma ditadura militar – um regime que assumiu explicitamente a “barbaridade” como forma de lidar com os opositores; que agia em consonância e em sintonia com a CIA (leia-se: com os interesses americanos).

Há muito cinismo, mas também desconhecimento naqueles que dizem que só morreu quem fez por merecer. O problema de um regime arbitrário é que a resolução de quem vive e quem morre, o que pode e o que não pode, e em quais limites, são decisões tomadas por uns poucos – e conforme critérios que não são compartilhados. Qual era a segurança efetiva de cada um, se qualquer manifestação de insatisfação poderia ser tomada como subversão?

Além disso, vale refletir sobre o que sabemos efetivamente do período da ditadura; os jornais eram censurados, as informações não circulavam. Dados eram manipulados e escondidos. Denúncias de corrupção jamais foram investigadas – nem na época nem depois, e não chegaram a domínio público [5] . Lembremos que políticos como José Sarney, Paulo Maluf, entre outros, surgiram nessa época. E que o famoso “milagre econômico” foi um milagre para poucos, convivendo com a desigualdade e a pobreza [6].

Não caberia aqui discutir o papel das Forças Armadas; seguramente, não é governar. Quem conclama hoje a intervenção das Forças Armadas necessita antes, e sobretudo, olhar para o passado. Conhecer nossa história.

Vera França
Professora Titular de Comunicação Social pela UFMG e coordenadora do GrisLab



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