Para a extinta classe social dos soldados da aristocracia japonesa, os samurais, a vergonha da falha em servir seu mestre ou qualquer outra desonra, só poderia ser redimida pelo ritual do hara kiri, uma lenta e extremamente dolorosa prática de suicídio, que deveria ser sofrida em silêncio diante de testemunhas.
No Brasil, assistimos ainda hoje a morte ser o custo da honra desapossada.
Nas últimas semanas, foram registrados e largamente cobertos pela mídia, dois suicídios de jovens mulheres que tiveram registros de sua sexualidade amplamente divulgados na Internet. Primeiro, no dia 10 de novembro, no Piauí, Julia Rebeca, de 17 anos, se enforcou após um vídeo íntimo ter sido acidentalmente compartilhado entre seus contatos e assim se tornado viral. Apenas quatro dias após esse ocorrido, o mesmo modo de suicídio foi cometido por Giana Laura Fabi, de 16 anos, na Serra Gaúcha, que teve sua imagem seminua capturada durante uma conversa no Skype com um colega, quem intencionalmente a enviou para outros rapazes. De acordo com E. Durkheim, o suicídio não se dá apenas por motivações individuais e aqui nos instiga pensar o quanto o machismo continua a nos atravessar e a se manifestar nas relações diárias, de modo tal que apenas a morte pode oferecer indulto à sexualidade explícita de uma jovem mulher.
Nesse sentido, é interessante observar que o enquadramento dessas trágicas mortes se distancia do modo como foi promovido o episódio de Francyelle, de 19 anos, que no início de outubro teve sua vida pessoal rechaçada com a enorme repercussão de um vídeo em que protagoniza relações sexuais e conversa sedutora com seu ex-parceiro, principal suspeito de divulgar o material. O conteúdo dessas imagens, além de pautar grandes veículos de comunicação, incitou comentaristas preconceituosos e humor perverso, como a coleção de fotografias parodiando o gesto de OK que aparece no vídeo, postadas em redes sociais, inclusive por famosos, como o jogador Neymar e o cantor Leonardo. Ainda que não sejam recentes ou raras as ocorrências de pornografia de vingança, em que um dos parceiros divulga conteúdos pessoais do casal com a intenção de expor seu cônjuge, nesse caso, a jovem não só foi identificada, como lhe foi socialmente desautorizada a condição de vítima, já que ela mesma permitiu ser filmada por um homem casado, o que justificaria o castigo de toda exposição e escárnio. Fran, como ficou conhecida, teve que mudar sua aparência e, ainda assim, precisa evitar sair de casa.
Posta a definição de acontecimento – citada por Vera França em outra análise do GRISLAB como algo que “irrompeu na normalidade do cotidiano de forma a provocar sua desorganização e abrir novos campos de sentido” –, o acontecimento do vídeo de Fran rompe com o ordinário, mas não parece emergir como algo destoante aos valores socialmente compartilhados e sim como uma legitimação desses. Em nossa sociedade machista, embora seja constante a promoção midiática de corpos sexualizados, existe uma diferença valorativa entre a mulher sugerir o sexo e ter sua sexualidade ativa declarada. Segundo E. Tseëlon, os ideais ocidentais de feminilidade estão diretamente relacionados à imagem de primeira mulher que, na doutrina cristã, é assumida por Eva, a grande responsável por condenar a humanidade a uma vida mortal e de pecados, após oferecer o fruto proibido a Adão. Desse modo, o sexo é tido como uma sedução maléfica à virtude, cabendo à mulher o papel de resistência e também de culpa.
É apenas com o suicídio de Juliana, seguido pelo de Giana, que se observa uma alteração no enquadramento. A morte de mulheres tão jovens surge como um agravamento da recorrente humilhação pública daquelas que têm sua sexualidade materializada em registros indevidamente difundidos, problema cada vez mais frequente em uma sociedade midiatizada, validando assim a condição de vítima. Observa-se que até em inserções midiáticas conservadoras, como no Fantástico, Época e Veja, o enquadre da temática passa a tomar contornos de denúncia e indignação, somando-se à crescente visibilidade de projetos de lei de criminalização da divulgação indevida de material íntimo, sobretudo, o de autoria do ex-jogador de futebol e atual deputado federal, Romário.
Com o choque da atitude extrema do suicídio, começa a despontar no horizonte possibilidades de mudanças, ao menos políticas, em relação a esses crimes sexuais. Um exemplo é o apoio institucional do grupo feminista Marias Baderna e o Comitê de Ética da Universidade de São Paulo à estudante Thamiris Mayumi Sato, de 21 anos, que no dia 17 de novembro denunciou publicamente as ameaças e práticas de pornografia de vingança que vinha sofrendo há meses de seu ex-namorado. No entanto, ainda estamos no começo de um provável processo de ressignificação, tanto que resquícios da culpa feminina persistem e são percebidos, inclusive, no discurso daqueles que militam para reverter isso. Em recente entrevista à revista Marie Claire, ao mesmo tempo que declara que a “nossa sociedade julga as mulheres como se o sexo denegrisse a honra”, Romário também afirma que “elas devem se proteger mais que o homem sim, levar em conta o grau de confiança no parceiro e tomar precauções”.
Na cultura do estupro, cabe à mulher o cuidado com o modo de se vestir e portar para evitar o crime, e também está a seu cargo a preservação da integridade de sua imagem, isentando assim o homem de qualquer responsabilidade. Enquanto não se instituir uma verdadeira transformação social, é provável que jovens vítimas de exposição pública da sua sexualidade continuem a serem culpabilizadas e o suicídio permaneça como uma espécie de hara kiri contemporâneo, uma possibilidade de reparar a honra que jamais foi perdida, mas sim socialmente negada.
Foto: Marcos Lopes/Época
Fernanda Miranda
Mestranda em Comunicação Social na UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG
Excelente análise.
Acho que vale a pena bancar o advogado do diabo, digo, do Romário. Se há culpa feminina na frase dele (“elas devem se proteger mais que o homem sim”), vejo essa culpa mais como algo que ele vê na sociedade – e que portanto exige realmente medidas de proteção – e menos como um “resquício” endossado pelo deputado…
Me lembrei de uma fala que vai no sentido oposto: a declaração de Maurício de Souza que reverberou nas redes sociais. Maurício argumentou que a mulher “tem que cuidar da casa, dos filhos”, e que portanto elas não ocupariam o mesmo espaço no mercado dos quadrinhos que os homens porque “quadrinho exige muito tempo de dedicação”.
Ora, é perigoso negligenciar a possibilidade que o quadrinista levantou. O problema é que uma potencial denúncia de como a divisão de responsabilidades domésticas é injusta não foi feita por ele: elas “tem” que cuidar mesmo; eles podem trabalhar “até tarde”, “sem vergonha”, sem se (pre)ocupar com a casa e com os filhos…
Claro que a maior polêmica não é esse, porque pelo raciocínio do Maurício a mulher não tem “tempo de dedicação”, e intui-se que não alcança resultados tão bons quanto os dos homens. Será? Bom, vamos olhar os quadrinhos feito por mulheres pra ter certeza…
Enfim, a transformação social que precisa acontecer passa definitivamente pelo campo dos valores. Conseguir articular discursos contra a opressão sem perder de vista a realidade opressora e a necessidade de se defender imediatamente dela – e ao mesmo tempo sem reproduzir essa lógica – não é nada fácil. E é uma necessidade que o hara kiri contemporâneo colocou na ordem do dia…