Análise | Diário da Quarentena Morte Questões raciais

Miguel, Pedro, Agatha: A dor das mulheres negras e a subjetividade através da voz

O racismo institucional destrói as subjetividades negras, pela violência direta e indireta, em especial das mulheres negras, excluídas do direito de terem filhos vivos. Como manter a humanidade?

Imagem: cat6719 / Pixabay

“Eu escrevo porque, para mim, não há outra maneira de enfrentar, de suportar, de arrumar a vida, a não ser escrevendo. Enquanto escrevo faço da vida que me é apresentada o que quero”

Conceição Evaristo

Uma criança de 5 anos já passou por vários estágios do desenvolvimento infantil: é bem possível que ela já coma sozinha, se vista sozinha, já tenha amplo vocabulário. Ela corre e imita o comportamento dos adultos, diferencia o certo do errado, sente medo. Por sentir medo, chora e pede pela mãe. Por causa desse choro, que indica o desenvolvimento saudável, uma criança de 5 anos é abandonada e guiada a cair de uma altura de 9 andares. Você consegue imaginar a cor dessa criança?

O texto “O Racismo que Matou Miguel” conta os detalhes desse crime tão infestado de racismos; mas eu chamo atenção aqui para a dor que esse crime causa, em nós, mulheres negras. Se fosse o filho de uma das amigas de Sarí, se fosse uma criança branca? Ele seria mandado para a morte sozinho e assustado?

Como pessoa preta, tenho a subjetividade dilacerada diariamente pelo racismo recreativo, dos pequenos gestos, do riso de canto de boca; do sexismo direcionado às mulheres negras, a “cor do pecado”; da pele de gente “assim, ó!”. A dilaceração vem também com racismos institucionais mais diretos, como a violência policial que nos aflige desde a abolição da escravatura até as prisões atuais superlotadas de pretos.

No entanto, o que mais me apavora é a possibilidade de não poder ver meus filhos crescerem. Possibilidade essa que nos é arrancada em todas as etapas da vida: desde o pré-natal ausente, a violência obstétrica, os descasos com a primeira infância, a violência policial na adolescência e na vida adulta, até a falta de atendimento médico hospitalar para os mais velhos e o racismo, puro e simples, de cada dia.

Como viver com as chagas da morte da menina Agatha Felix, de 8 anos, assassinada com um tiro nas costas? Ela fazia balé, inglês. Ela era quase… não fosse a cor da pele, os cabelos cacheados. Ou a morte do adolescente João Pedro, de 14 anos, assassinado dentro de casa enquanto brincava com os primos, que por muito pouco não teve direito a um enterro, pois queriam sumir com seu corpo.

A máquina racista, especialista em destroçar subjetividades negras, é um problema criado pela branquitude. Como podemos nos manter humanas em meio a todos esses destroços, enquanto matam nossos filhos? Grada Kilomba aponta que o caminho da retomada da humanidade arrancada de nós é através do discurso, da possibilidade de contar nossas próprias histórias. Conceição Evaristo nos concede voz quando o mundo nos cala. Eles continuam combinando de nos matar e, nós, de não morrer!

Nealla Valentim Machado, jornalista, doutoranda e mestra em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT



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