Ações e omissões do governo federal estão facilitando a disseminação do novo coronavírus nas comunidades indígenas, que têm menos recursos e são mais vulneráveis a doenças. Um exemplo claro são os Xavante de Mato Grosso.
O genocídio dos povos originários das Américas começou com Colombo em 1492 e é praticado por europeus e seus descendentes desde então. Além da pólvora e do aço, a guerra biológica de extermínio, ainda que por vezes não intencional, tem sido uma grande aliada na maior dizimação populacional da história. Isso ocorre porque os indígenas não possuem anticorpos para vírus e bactérias importados. Com a Covid-19 acontece a mesma coisa com todos nós. A diferença entre a vida e a morte, então, está no acesso à informação, a produtos de higiene e limpeza e principalmente à infraestrutura hospitalar. Novamente isso está sendo negado aos indígenas brasileiros e esse fato já repercute em todo o mundo.
No Brasil, há registros de distribuição de roupas e utensílios propositalmente infectados, especialmente com o vírus da varíola, na eliminação de populações autóctones para a tomada de territórios até pelo menos a década de 1960. O processo de genocídio físico e cultural por terras não parou mesmo com a redemocratização do país, mas com Bolsonaro no poder ele se intensificou. A primeira representação por genocídio contra o presidente no Tribunal Penal Internacional, aliás, ocorreu ano passado por causa de sua política contra os povos originários. A representação mais recente, de julho, tem como objeto ações e omissões no combate à Covid-19. Não há como dissociar as duas ações.
A chegada da pandemia no país apenas acelerou o genocídio indígena e Mato Grosso, infelizmente, é mais uma vez um “bom” exemplo. No estado, vivem 43 povos indígenas, incluindo os Bororo, Krenak, Kaiapó e Xavante, a maior etnia, com mais da metade dos 43 mil estimados. A primeira vítima indígena mato-grossense da doença foi um bebê xavante de 8 meses, no dia 11 de maio. No dia 29 de julho, segundo levantamento de Viviane Francischini, profissional da SES-MT e militante da causa indígena, dos 269 óbitos registrados entre povos originários, 54 foram em Mato Grosso. Enquanto a taxa geral de letalidade no estado estava em 3,58 para cada 100 infectados confirmados, entre os indígenas o número era de 4,95/100. Na DSEI Xavante, com 31 mortes, a taxa chegava a 8,89/100.
Apesar disso, no início de julho, o presidente vetou aos povos indígenas 14 artigos no “Plano emergencial de enfrentamento da Covid-19 em grupos de extrema vulnerabilidade”, que estava em sua mão há quase um mês. Entre os pontos vetados estão a obrigatoriedade de garantia de acesso à informação, à água potável, distribuição de kits de higiene e limpeza, acesso prioritário a leitos hospitalares e a programas de proteção social.
No dia 21 de julho, o Ministério Público Federal pediu formalmente ao Parlamento a derrubada dos vetos. Mas até o fechamento deste texto não havia previsão para essa votação em um Congresso repleto de representantes do agronegócio e da mineração, sempre de olho nas terras indígenas. Para eles, o ainda candidato Bolsonaro prometeu, e está cumprindo, que não haveria um centímetro de novas demarcações. Sem gente em cima da terra, é mais fácil entregar o território à exploração econômica.
A luta, iniciada há mais de cinco séculos, contudo, continua. Na última quarta (5 de agosto), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que o governo federal deve adotar medidas de contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas. Trata-se sem dúvida de uma vitória política dos povos indígenas. Resta saber se o governo realmente vai aceitar essa ordem judicial ou se vai colocar algum general sem qualquer representatividade ou articulação regional comandando um suposto “comitê de crise”, como fez com o Braga Netto quando Mandetta saiu do Ministério da Saúde ou com o vice-presidente Mourão quando precisou dar uma resposta ao aumento das queimadas na Amazônia.
Vinicius Souza, jornalista, fotógrafo e documentarista na MediaQuatro e Jornalistas Livres. Mestre e doutor em Comunicação pela UNIP/SP, professor de Jornalismo na graduação da UFMT e na pós-graduação em Comunicação e Poder (PPGCOM/UFMT)