Como o avanço da descriminalização do aborto na Argentina nos afeta? A pesquisadora Thaís Choucair fala a partir de dois sentimentos: a empatia com as argentinas avançando na conquista de direitos e a indignação com a situação no Brasil. Confira a primeira parte da análise a seguir.
No último dia 22 de junho, uma sexta-feira dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo, centenas de mulheres se reuniram na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, para reivindicar a descriminalização do aborto. O ato foi uma resposta imediata à aprovação do projeto de lei para a legalização da interrupção voluntária da gravidez na Câmara dos Deputados da Argentina. A votação no Parlamento do país vizinho, que aconteceu no dia 14 de junho, terminou com um placar acirrado: 129 votos a favor e 125 contra, fazendo com que milhares de manifestantes comemorassem emocionadas nas ruas de Buenos Aires. Utilizando lenços verdes tal como as feministas argentinas, e inspiradas por elas, as mulheres belorizontinas gritavam músicas de conexão da América Latina em prol de um direito que sempre lhes foi negado: o do controle do próprio corpo. Outros protestos aconteceram nesse mesmo dia e nos dias seguintes em outras cidades do Brasil.
O avanço da pauta da descriminalização do aborto na Argentina afeta quem luta por esse direito no Brasil através de dois sentimentos diferentes. Falo a seguir um pouco sobre os aspectos sociais e políticos a partir de cada um desses sentimentos.
“Companheira vamos juntas
Que eu não posso andar só
Eu sozinha ando bem
Mas com você ando melhor”
Música cantada nos protestos pela legalização do aborto no Brasil
O aborto é tão antigo quanto a Humanidade. Existem escritos, por exemplo, da China dos anos 2700 antes de Cristo descrevendo a utilização de chás abortíferos; também alguns filósofos da Grécia Antiga como Aristóteles, Platão e Sócrates, citavam o aborto como uma prática recorrente daquela época. Mas a condenação e a punição por abortar também não são novidade na vida das mulheres; elas foram privadas da autonomia dos seus próprios corpos desde muito cedo. Uma das legislações Bárbaras, por exemplo, do Século VI, punia ferindo com duzentos golpes de vara as escravas que abortavam; já as mulheres livres eram punidas sendo transformadas em escravas. A criminalização do aborto causou, e causa ainda hoje, todos os dias, um enorme sofrimento físico e psicológico para as mulheres. Além de poderem ser denunciadas, julgadas ou presas, elas se vêem sozinhas, desesperadas, sem apoio do Estado ou apoio pessoal de quem está ao seu redor, recorrendo, especialmente se forem pobres, a métodos precários e insalubres com um alto nível de risco para suas vidas. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma mulher morre a cada dois dias devido a um aborto clandestino no Brasil[1]
O avanço do Projeto de Lei de descriminalização na Argentina causa, em quem já viveu um aborto clandestino ou esteve próxima a essa experiência, uma felicidade específica: a de pensar na possibilidade de as argentinas não precisarem mais passar por tamanho constrangimento social, perseguição, medo e risco para suas próprias vidas. Essa empatia nasce especialmente da consciência de que a violação da autonomia e da integridade não é individual e sim coletiva, e é fruto da situação de opressão e exploração que as mulheres vivem em diferentes contextos em todo o mundo; especialmente quando se reconhecem enquanto mulheres latino-americanas, herdeiras de difíceis, problemáticas e um tanto similares Histórias nacionais. É preciso lembrar que o aborto foi descriminalizado em diversos países do chamado Norte Global no período da chamada segunda onda feminista, por volta dos anos 1960 aos 1980, quando o feminismo de fato começou a ganhar destaque e se fortalecer. Como sabemos, nessa época, a América Latina sofria com regimes ditatoriais. A criminalização do aborto hoje não pode ser destacada dos fatores econômicos, raciais, étnicos e espaciais: são os países em desenvolvimento que sofrem com leis mais severas, e, nestes, são as mulheres negras e pobres que mais são atingidas com a clandestinidade.
Thais Choucair
Doutoranda em Comunicação Social pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Mídia e Esfera Pública/ Eme
(A segunda parte da análise está disponível no link).
[1] Fontes: ESTADÃO, “Aborto mata uma mulher a cada dois dias no Brasil e inspira filme premiado” e ISTOÉ, “A cada dois dias, uma brasileira morre por aborto“