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O beijo Lutávio: entre retrocessos, mais uma conquista

Pela primeira vez em 47 anos, a Rede Globo exibiu um beijo entre dois homens em uma novela das seis. Com comemorações e rejeições por parte do público, a atitude da emissora repercutiu no ambiente online e gerou uma discussão sobre a representação LGBT na mídia brasileira.

Fonte: Reprodução/Rede Globo

Em 12 de setembro de 2018, a Rede Globo mostrou, pela primeira vez em sua história, um beijo de um casal homoafetivo numa novela das seis. O folhetim em questão foi Orgulho e Paixão, trama de época baseada no universo da escritora Jane Austen. Os personagens de Luccino e Otávio, interpretados por Juliano Laham e Pedro Henrique Müller, se beijaram após um longo processo: primeiro, se reconheceram e se aceitaram gays; depois, descobriram o amor e começaram a sentir as dificuldades impostas para quem não se encaixa nos padrões vigentes da sociedade. Esse percurso foi ambientado no início do século XX, mas poderia ter sido vivido nos dias atuais sem perda de verossimilhança.

A Internet estava afoita há semanas na expectativa pela cena. Além da cobertura tradicional dos blogs sobre televisão, um fandom se desenvolveu, chamado “Lutávio”, com contas, memes, fan arts e fan fictions dedicadas ao casal fictício surgindo aos montes nas redes sociais digitais. Os fãs passaram a interagir constantemente com os atores online e vice-versa (e ainda continuam, mesmo após o fim da novela). A hashtag #Lutávio foi um forte agregador, sendo utilizada pela própria Rede Globo diversas vezes em suas contas oficiais, tanto para se comunicar com o público quanto para promover a novela. No dia da exibição, noveleiros foram ao Twitter para discutir o momento catártico: em sua maioria, comemoravam a conquista da representatividade. Entre jovens e idosos, anônimos, influenciadores e o elenco da novela, era uma diversidade de públicos.

Nem tudo foi celebração, claro. Parte da audiência se ofendeu com a iniciativa, classificando a cena como “imoral”, “desrespeitosa” e “apelativa”. Comentários no Facebook oficial da Globo indicavam bem o tom: “Achei totalmente desnecessário, inclusive pelo horário. Qual a necessidade de uma criança assistir isso.”; “Vamos ter que manter saquinhos para vômito sempre ao alcance da mão quando assistirmos à Globo.”.

A repercussão negativa começou antes do beijo. O ator Juliano Laham declarou que começou a perder seguidores online desde que seu personagem se assumiu gay. As opiniões, porém, não intimidaram a emissora (como havia ocorrido no passado): em 21 de setembro, o casal se beijou novamente após declararem que haviam passado a noite juntos. E terminaram a novela felizes e unidos.

O beijo “Lutávio” veio como mais um marco na longa luta por representatividade dos sujeitos LGBT na mídia. Ao tratar o assunto com um tom afetuoso numa faixa inédita, a Rede Globo atingiu uma audiência que tinha pouco contato com essas histórias (Orgulho e Paixão tinha classificação indicativa de 12 anos), e chega com o forte impulso para que narrativas assim continuem sendo contadas e se integrem ao comum. Com um presidenciável que abusa dos discursos homofóbicos, essa presença nos dias atuais se torna ainda mais urgente. A emissora, nesse sentido, vem trabalhando para essa inclusão: em Malhação: Vidas Brasileiras, dois adolescentes são gays, e o bullying e a homofobia são constantemente problematizados. Isso vem como alarde e incômodo para quem ainda resiste à diversidade. Talvez, em algum momento, não será mais uma necessidade. Como disse Otávio, ao se declarar para Luccino, “quem sabe, um dia, eu possa tirá-lo para dançar sem que as pessoas achem que nós estamos tentando ofendê-las, ou afrontá-las? Quando na verdade, nós só queremos viver e fazer um ao outro felizes.”. Quem sabe.

Nota do autor: Enquanto esta análise estava em processo de revisão, outro beijo entre duas personagens masculinas foi exibido pela Rede Globo, no dia 3 de outubro de 2018, em Malhação: Vidas Brasileiras. A peculiaridade deste acontecimento é que o casal em questão é formado por dois adolescentes, sendo que um deles já havia se aceitado gay, enquanto o outro passou por um processo similar ao descrito no primeiro parágrafo deste texto. Foi a primeira vez, em 23 anos e 26 temporadas, que a série exibiu um beijo entre rapazes. Vale lembrar que na temporada passada, Viva a Diferença, foi exibido um beijo entre duas garotas, marcando, assim, o primeiro beijo homoafetivo na história de Malhação.

Observando todo esse processo de representatividade, desde o primeiro acontecimento até os mais recentes, conseguimos visualizar uma lenta, mas significativa transformação em curso. A proximidade entre as exibições, as faixas de programação e audiências inéditas alcançadas, as reações dos públicos e uma certa tendência à normalização dessa afetividade pela mídia nos ajudam a perceber que, apesar dos constantes entraves e retrocessos, existem conquistas e elas devem, sim, ser celebradas. Porque essa vitória é nossa.

Pedro Paixão

Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais



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