Em 30 de julho, o Governo Federal publicou uma Instrução Normativa que amplia o trabalho remoto na administração pública. Com vigência prevista para 1 de setembro, as novas regras deflagram um Estado cada vez mais fragilizado pelas políticas neoliberais que buscam implantar no serviço público as práticas exploratórias já comuns no setor privado.
A economia de mais de R$ 450 milhões entre abril e junho foi um dos motivos utilizados pelo Governo Federal para editar a Instrução Normativa (IN) nº 65/2020, que regulariza o trabalho remoto no serviço público. O documento estabelece orientações que permitem aos órgãos do poder executivo implantar o regime especial de trabalho, mesmo após o fim da pandemia.
O conjunto de novas regras se apoia no discurso de “modernização” e “inovação” do setor público, mas na prática representa mais uma ação de fragilização do serviço estatal, uma pauta de interesse da agenda neoliberal. A intenção é trazer para a administração pública as práticas das organizações privadas, reconhecidas como eficientes e de qualidade. A apropriação desse modelo, já amplamente praticado no setor privado, reforça ainda mais a precarização do trabalho na administração pública. Uma verdadeira armadilha para os trabalhadores.
Entre os objetivos da IN, constam pontos que poderiam facilmente ser confundidos com os de uma empresa privada: o aumento da qualidade das entregas, redução dos custos, atração e manutenção dos talentos, contribuição para a motivação dos participantes, estímulo ao trabalho criativo e, somente no sexto item, a única menção direta ao trabalhador: melhoria da qualidade de vida.
A situação se agrava quando se analisa os itens dos relatórios de desempenho dos órgãos que adotarem o regime de teletrabalho. A orientação é que devem constar dados referentes à variação de gastos, ao impacto na produtividade, à melhoria nas entregas e às boas práticas implementadas. Não há nenhuma menção à coleta de informações referentes à qualidade de vida.
Não bastasse isso, a normativa exige do servidor: dados telefônicos atualizados, consulta diária aos e-mails, disponibilidade constante para contato e um relato periódico do andamento de suas atividades. Sob a égide de um discurso de aparente autonomia, o que na verdade se opera é a instituição de novas formas de vigilância, mais sutis e refinadas. O resultado disso é o borramento dos limites da vida pessoal e profissional, o tempo de trabalho e não trabalho. Por consequência, grupos mais vulneráveis, como as mulheres, são um dos mais atingidos, visto que o peso da dupla jornada, antes executada de forma sequenciada, agora passa a ser uma atividade simultânea. Isso tudo indica que o termo flexibilização nada mais é do que uma nova roupagem para as velhas práticas exploratórias: pressão por agilidade, acúmulo de tarefas, responsabilidade no enfrentamento dos riscos e desamparo das leis trabalhistas.
O trabalho remoto proposto na IN exige investimentos e impõe ao servidor a responsabilidade pelos custos com segurança dos dados, internet, energia e telefone. Se trabalhar em casa aparentemente é uma benesse administrativa trazida pelo novo regime, uma análise mais crítica revela um verdadeiro manual de punições. Estão proibidos: o pagamento de horas extras, a adesão ao banco de horas, o recebimento de auxílio transporte e de adicional noturno. Isso significa que a flexibilização vem acompanhada de significativas reduções nos rendimentos mensais do trabalhador.
O maior risco desse enaltecimento da cultura da flexibilização é a abertura para a aceitação de outras formas para sua realização. Se já está em foco o discurso do profissional responsável pela sua carreira, polivalente, que valoriza a adaptabilidade, que apresenta vontade incessante por qualificações e que tenha a disponibilidade para o acúmulo de tarefas, a tônica do momento é a valorização do sujeito compreensivo da situação macroeconômica trazida pela pandemia e, portanto, flexível ao ponto de renunciar aos seus direitos quando solicitado.
Para agravar o cenário, a IN ainda estabelece uma competição entre os servidores, na medida em que, havendo maior demanda de interessados do que o número de vagas, terão direito apenas os que apresentarem um plano de trabalho com as melhores propostas de retorno ao órgão administrativo. Aqui se completa o ciclo de valores-armadilhas desejáveis aos servidor público: flexível, empreendedor, compreensível e competidor, características que cada vez mais o distancia de desenvolver um sentimento de classe.
Dôuglas Ferreira, professor do Departamento de Comunicação da UFMT e doutorando em Comunicação Social pela UFMG
Excelente texto!
Obrigado pela leitura 😘