Diário da Copa – O primeiro gol marcado na Copa sediada no Brasil foi contra. Na mesma partida, um pênalti bastante questionado foi marcado a favor da nossa seleção. Numa Copa que chegava em clima de muita controvérsia, quais são os sentidos despertados por essas ocorrências logo no primeiro jogo?
O gol contra do Estado
O dia da abertura da Copa do Mundo no Brasil foi marcado por muita expectativa e tensão. Após uma cerimônia pouco empolgante, as seleções de Brasil e Croácia entraram em campo. O jogo iniciou nervoso e se tornou mais ainda após a marcação do gol contra do lateral da seleção brasileira, Marcelo. Muitos brasileiros entenderam esse gol contra, logo no início da partida, como uma metáfora do que consistiu a organização da Copa do Mundo para a sociedade brasileira, associando-o tanto com o desacerto e desorganização no encaminhamento das obras (a tradicional ineficácia brasileira) quanto com a má administração do dinheiro público.
O gol contra da mídia – parte 1
Durante o jogo, ainda sob o impacto do primeiro gol (contra), alguns torcedores brasileiros postaram mensagens racistas nas redes sociais vinculando o erro do lateral Marcelo, à cor da sua pele. Um machismo velado também pôde ser percebido nos comentários de alguns apresentadores de televisão que criticaram os jogadores que por se emocionarem antes de entrarem em campo ou durante a execução do hino brasileiro, entendendo esse comportamento como um sinal de fraqueza. No caso dos comentários racistas, é interessante notar que quando Neymar, que também é afrodescendente, marcou o gol de empate e o gol da virada, não houve associações desse êxito ao fato dele ser negro.
O gol contra da mídia – parte 2
Apesar da bela atuação de Neymar merecer destaque na imprensa, a maioria dos jornais nacionais e estrangeiros vinculou a vitória da seleção brasileira a uma falta que para a grande maioria de comentadores esportivos, inclusive internacionais, não existiu. Não é preciso ser um grande conhecedor de futebol para ter ciência de que, ao longo da história, várias partidas decisivas de futebol, em campeonatos nacionais e mundiais, foram definidas por lances polêmicos – no Brasil, aliás, isso é bastante comum no Campeonato Brasileiro. Historicamente, principalmente no que diz respeito à imprensa brasileira, o enquadramento dado a esses lances polêmicos, sempre tendeu a privilegiar a dificuldade do lance em questão, ou a incompetência do árbitro, sendo raras as ocasiões em que se defendeu unanimemente a tese de má fé do árbitro, como ocorreu na primeira semana da copa.
(in) conclusão
Os discursos veiculados nos meios de comunicação têm grande potência para influenciar a forma como os sujeitos percebem o mundo e constroem suas subjetividades. Ao optar por repercutir de maneira polarizada o episódio do pênalti, enquadrando-o como uma ação premeditada, em vez de centrar na natureza polêmica da jogada, como é de praxe, a imprensa nacional contribui para uma desvalorização simbólica dos eventos ligados à Copa do Mundo, de sua organização e mesmo para uma deslegitimação de uma possível conquista do título pela seleção brasileira.
Essa postura reflete a indignação de grande parte da sociedade diante da organização da Copa e da maneira como a FIFA participou dessa organização, mas, ao mesmo tempo, contribui para a consolidação, no imaginário nacional e mundial, de que no Brasil “tudo”, inclusive os êxitos, estão vinculados à corrupção. A reificação desse discurso contribui para sua cristalização e dificulta a proposição (e aceitação) de ações diferentes. Por outro lado, as diversas manifestações de repúdio à Copa, nas ruas ou nos comentários da imprensa, sugerem uma mudança de postura do povo brasileiro que em outras ocasiões, em nome da paixão pelo seu esporte favorito, aceitou manipulações ou se absteve de protestar. Essas expressões de descontentamento tensionam a representação do povo brasileiro como um povo passivo, que não questiona o que lhe é imposto.
Foto da home: Marcelo Ferrelli/Gazeta Press. Reprodução Gazeta Esportiva.
André Melo Mendes
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisador do Gris/UFMG