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A elite brasileira e a naturalização da desigualdade social

Um vídeo protagonizado por Bia Dória e Val Marchiori desencadeou discussões sobre a atenção e o apoio social à população em situação de rua. Divulgado no dia três de julho de 2020, o vídeo nos convoca a refletir sobre a desigualdade social no Brasil, as políticas públicas para combatê-la e a própria rua como espaço público.

Fotos: reprodução / portal Hugo Gloss

A população em situação de rua pode ser entendida, a partir de um decreto de 2009, como “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”. O mesmo decreto institui a política nacional de atendimento a essa população definindo diretrizes e responsabilidades da União, dos entes federativos e da sociedade civil. De acordo com dados do IPEA, cerca de 101.854 pessoas viviam em situação de rua no país em 2016. Como aponta um relatório da Organização das Nações Unidas, “a situação de rua é uma crise global de direitos humanos que requer uma resposta global e urgente”.

Essa temática ingressou no debate público nos últimos dias a partir de um vídeo protagonizado pela primeira dama do estado de São Paulo e presidente do Fundo Social do Estado, Bia Dória, e a socialite Valdirene Aparecida Marchiori. No vídeo, a primeira dama afirma não ser correta a doação de alimentos a moradores de rua, porque, segundo ela, “a rua hoje é um atrativo” e “a pessoa gosta de ficar na rua”: “A pessoa quer comida, ela quer roupa, ela quer uma ajuda e não quer ter responsabilidade, e isso tá muito errado”, afirma a primeira-dama.

O vídeo gerou uma série de posicionamentos de representantes do movimento sem teto, políticos do campo progressista e de organizações da sociedade civil questionando as ações realizadas pelo Estado no enfrentamento à falta de moradia, bem como a precariedade dos abrigos públicos e a ausência de vagas. Após a repercussão negativa do vídeo, a socialite Val Marchiori foi flagrada distribuindo marmitas na Praça da Sé, em São Paulo. E Bia Dória publicou uma nota de esclarecimento em que pede desculpas se sua fala deu a entender que não devemos amparar quem vive em vulnerabilidade”.

Esse acontecimento nos convoca a pensar sobre a desigualdade social no Brasil, e sua compreensão não deve se limitar à questão se devemos ou não dar marmita às pessoas em situação de rua. A discussão sobre a caridade que se manifesta nas doações não deve obscurecer uma reflexão mais ampla e aprofundada acerca dos elementos que configuraram historicamente a desigualdade social no país e de políticas públicas eficazes para combatê-la. Uma reflexão que não esteja assentada no discurso meritocrático e que leve em conta a conscientização em relação aos privilégios vinculados às questões de cor, gênero e classe. Nesse sentido, questionar o discurso da caridade, vinculado à naturalização da desigualdade social, abrindo caminho para a busca por equidade, se faz urgente.

Questionar o discurso da caridade não significa abrir mão da solidariedade. Ser solidário está relacionado à adoção de uma postura empática, que favoreça o exercício constante de se colocar no lugar do outro, sentindo sua dor e o reconhecendo como humano – conforme destacado por Guilherme Boulos. No contexto de pandemia em que vivemos, esse movimento é essencial para amenizar o sofrimento das pessoas em situação de rua.

Outro ponto fundamental que deve ser discutido à luz deste acontecimento se refere ao próprio espaço da rua. Compreender que a rua é espaço público, de encontro, de todas e todos, é fundamental. Essa compreensão pode impulsionar o diálogo com seus atores e nos levar a entender que, muitas vezes, a rua é a única opção. Desconstruir nossa visão sobre a pobreza como algo sujo, que precisa ser escondido, pode ajudar a romper com o pensamento higienista e a construir um pensamento inclusivo, que desloque as pessoas de um lugar de carência para o de potência. Para alcançar esse objetivo, precisamos estar dispostos a reconhecer nossos privilégios e a assumir nosso papel, como cidadãos, no enfrentamento às desigualdades e na luta por justiça social.

Kátia Silva Simões, mestranda em Ciências Humanas na UNISA. Pesquisadora do CISGES – Gênero, Mobilidade e Fronteiras: interdisciplinaridade e construções identitárias
Paula Simões, professora do PPGCOM/UFMG. Pesquisadora do GRIS



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