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A nova lei do saneamento e o risco de um povo à mercê

Foi sancionada, em meio à pandemia, a lei que estabelece um novo marco regulatório para o saneamento básico no Brasil. Apesar das graves desigualdades de acesso no país, a iniciativa gerou debates e dividiu opiniões por facilitar a privatização de serviços essenciais como acesso à água tratada e rede de esgotos.

Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

No Brasil, o déficit no acesso ao saneamento básico apresenta um fiel retrato das desigualdades sociais, raciais e regionais que assolam o país: o acesso é menor entre moradores das regiões Norte e Nordeste e das áreas rurais e periféricas – grande maioria de negros e indígenas. De acordo com o último diagnóstico do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apenas 76% da população urbana brasileira é atendida com redes de água, ou seja, cerca de 50 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. No atendimento por redes de esgotos a situação é ainda mais grave: só 105,5 milhões de pessoas são atendidas, o que significa 50% da população sem cobertura.

Diante das disparidades, e em meio à pandemia, o Congresso Nacional aprovou o novo marco regulatório do saneamento no Brasil. A matéria foi apresentada pelo governo como Projeto de Lei ao Congresso em 2019, após a Medida Provisória 868/2018 ter perdido a validade. O PL 4.162/2019 foi aprovado na Câmara em dezembro do ano passado e ganhou força na pandemia a ponto de ser rapidamente retomado e aprovado no Senado. A sanção pelo presidente da República se deu no último dia 15 de julho, com 12 vetos, o que gerou mal estar e críticas entre senadores, que se mobilizam para derrubar os vetos.

Durante o processo de discussão, a iniciativa gerou debates e dividiu opiniões por facilitar a privatização de estatais do setor e abrir possibilidades para a mercantilização do acesso à água tratada e a outros serviços, como coleta e tratamento de esgotos, que deveriam ser universalizados e cuja ausência coloca em risco a saúde da população. Também levantou suspeitas o fato de o relator do projeto, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), representar interesses da Coca-Cola no Brasil, já que uma empresa do Grupo Jereissati é acionista da Solar, segunda maior fabricante da multinacional no país. As críticas vêm do fato de a empresa consumir grande quantidade de água na fabricação de seus produtos e, portanto, ter interesse direto na Lei.

Para defensores do novo marco legal, trata-se de uma modernização necessária e urgente para a superação das desigualdades no acesso ao saneamento básico no país. Pela nova legislação, os contratos em vigor viram concessões para as empresas privadas que assumirem as estatais nos municípios e estados, e elas deverão se comprometer com metas de universalização a serem cumpridas até o fim de 2033: cobertura de 99% para o fornecimento de água potável e de 90% para coleta e tratamento de esgoto. O texto prorroga o prazo para o fim dos lixões.

Já parlamentares e movimentos sociais contrários afirmam que o caminho deveria ser o do fortalecimento dos serviços públicos; que privatizar serviços tão essenciais pode condicioná-los à lógica do lucro e impedir o acesso por uma parte da população; que a  iniciativa privada não teria interesse em investir em lugares periféricos, ou cobraria tarifas excessivas para compensar o alto investimento em infraestrutura. Além disso, estudos indicam que a privatização do setor já se mostrou inadequada em muitos países e que há uma tendência global de reestatização dos serviços onde ela foi adotada como solução.

É fato que a limpeza das vias públicas, o acesso à água tratada, a drenagem da água da chuva e um sistema adequado de coleta e tratamento de esgotos são fundamentais para a garantia de condições dignas de existência humana, além da preservação ambiental. Não à toa o saneamento básico está na Constituição Federal como um direito a ser assegurado pelo Estado e a Organização das Nações Unidas (ONU), há exatos 10 anos, declarava o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico como direitos humanos fundamentais. Neste momento, tais direitos se mostram ainda mais imprescindíveis, já que uma das principais medidas de contenção do coronavírus é a higiene. A decisão de facilitar a privatização de um setor tão crucial não apenas torna manifesto o desinteresse do Congresso e do governo brasileiros em investir na eficiência da gestão pública, mas também ameaça deixar populações já vulnerabilizadas à mercê: ou do desabastecimento, ou da cobrança de valores excessivos por serviços essenciais.

Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda em Comunicação (UFMG) e pesquisadora do Gris



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