O funeral, o protesto e a (des)construção de um mundo comum
O texto analisa o protesto realizado no funeral do ex-presidente do PT José Eduardo Dutra, evidenciando alguns traços da sociedade brasileira que podem ser apreendidos a partir desse acontecimento.
O ex-presidente do PT José Eduardo Dutra morreu no dia quatro de outubro em Belo Horizonte, aos 58 anos, vítima de câncer. Seu corpo era velado por familiares e amigos na Funeral House, na capital mineira, quando um pequeno grupo de pessoas iniciou um protesto diante da casa: eles portavam cartazes com dizeres como “Lula sua hora tb tá chegando”, “Lula na cadeia”, “Lula pai dos ricos”. Espalhados pelo chão, panfletos atirados de um carro também criticavam o PT: um deles dizia “Petista bom é petista morto”; em outro, uma montagem com uma foto da presidenta Dilma sentada em um vaso sanitário com a frase “Só faz cagada” (com uma foto de Lula ao lado e o número 7 em referência ao índice de aprovação do governo).
Protestos como este vem sendo uma constante no cenário brasileiro contemporâneo. Diariamente, vemos discursos de ódio serem proferidos contra Dilma, Lula e o Partido dos Trabalhadores, muitas vezes fazendo uma apologia da violência como esse cartaz que prega que “petista bom é petista morto”, como bem pontuou Eduardo Guimarães. Outras vezes, tais discursos promovem uma agressão e um desrespeito à figura da presidenta do país, como no caso do adesivo para carros que foi comercializado com o rosto de Dilma em um corpo de pernas abertas a ser colocado no tanque de combustível – acontecimento também analisado aqui.
Sem qualquer pretensão de naturalizar esse tipo de protesto que deve ser problematizado e combatido pelas instâncias cabíveis, o que chama a atenção nesse protesto específico é o contexto escolhido pelo grupo para fazê-lo: um funeral. De acordo com José Carlos Rodrigues, em sua reflexão sobre o Tabu da Morte, “Os funerais são ao mesmo tempo, em todas as sociedades […] uma crise, um drama e sua solução: em geral, uma transição do desespero e da angústia ao consolo e à esperança” (2006, p. 21). Ou seja, o funeral é um momento em que familiares e amigos buscam se conformar com aquela realidade da morte do outro – daí o respeito que uma morte evoca no momento da vivência do luto.
Como uma família pode transitar da dor e do desespero ao consolo diante de cartazes como os citados anteriormente? Como aceitar aquela morte enquanto outros clamam e desejam por outra morte – a de Lula – muito perto dali? Como compreender essa completa falta de respeito à dor de uma família? Acontecimentos como esse parecem estar esgotando nossa capacidade de julgar e compreender o mundo, assim como os totalitarismos da primeira metade do século XX fizeram ruir as categorias de pensamento de Hannah Arendt. Certamente, não é possível igualar o contexto de emergência e afirmação do nazismo e do fascismo na Europa e o contexto brasileiro contemporâneo. Mas discursos de ódio e apologia da violência como os expressos no funeral de Dutra apontam para uma sociedade em que o respeito, a tolerância e a busca da dignidade humana deixaram de construir um mundo comum – um universo de valores compartilhado capaz de orientar a ação humana – abrindo caminho para uma outra forma de totalitarismo.
Paula Simões
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris/UFMG
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de novembro, definido em reunião do Grislab.
Caro Paulo Henrique,
não vimos esse discurso do presidente do PCB; certamente não teve o alcance e a repercussão dessas outras manifestações. Quando o PCB provocar um “acontecimento”, é provável que comentemos, embora aquilo que conseguimos acompanhar / comentar é uma parte muito pequena de tudo que vem acontecendo. Mas o fundo de seu comentário está correto; não digo que “nunca”, porém pelo tom do que você disse, acredito que seja pouco provável que você vá encontrar aqui um bom espelho de suas opiniões. Democracia é também isto, não? Espaços específicos que defendem posições diferentes. Com toda certeza, não faltam espaços nas redes sociais com os quais você se sente mais identificado.
Quando o “Laboratório de análise de acontecimentos” escreverá um artigo falando sobre o discurso de ódio proferido, recentemente, pelo presidente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Mauro Iasi, que pediu o fuzilamento dos conservadores e adeptos do pensamento de direita durante uma palestra no Segundo Encontro Nacional da Central Sindical e Popular? Nunca!
Democracia? Não. Democracia somente quando todos estão de acordo com o que a esquerda pensa.
Caro Paulo Henrique de Lima,
Em tempos de intolerância, manifestada tanto no protesto no funeral de ex-presidente do PT quanto na declaração de Mauro Iasi, sugerimos que comente de forma mais amena e menos fatalista, “pré-conceituosa”. Sua provocação teria sido mais interessante se tivesse proposto abertamente uma análise sobre a citação dos versos de Bertolt Brecht pelo membro do PCB (fato que podemos discutir esta semana, na próxima reunião do GRISLab) do que nos “fuzilado” com um estereótipo raso do que é posicionamento de esquerda. A democracia que você e as pessoas envolvidas na produção deste portal prezam, construída por respeito mútuo pra além do evidente repúdio aos paredões, agradece. Democracia sempre.