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Entre sorrisos, Bolsonaro esvazia a marca dos 100 mil brasileiros mortos pela Covid

Analisamos a estratégia comunicativa posta em ação pelo presidente Jair Bolsonaro de esvaziar a força de um acontecimento: a trágica marca alcançada de 100 mil brasileiros mortos pela Covid. Com seu egoísmo militante, despreza a vida do Outro, considerando a morte um mero estorvo político a ser driblado.

Foto: noticias.r7.com

No seu jeito esperto de ser, entre sorrisos, o presidente Jair Bolsonaro antecipou, dois dias antes de o país alcançar a trágica marca de 100 mil brasileiros mortos pela Covid-19, a reverberação midiática do acontecimento. Uma estratégia comunicativa que alia desinformação e distração, voltada para se imunizar contra o desgaste da figura pública, naturalizar as mortes e reduzir a sua responsabilidade e do seu governo.

Antes de ser perguntado, a esperteza foi falar primeiro, para esvaziar a pauta da mídia. Em seu egoísmo militante, Bolsonaro cuida de si, dos seus interesses políticos. A falácia posta em ação é a lógica da inevitabilidade da morte. Ou seja, morrer é condição inevitável da vida, o presidente não tem nada a ver com isso. Com denodo e cinismo, o presidente segue, ainda, conseguindo deslocar o debate político para longe da realidade: a omissão da sua responsabilidade de comandar o país no enfrentamento da pandemia. Naturalizando a morte inevitável, Bolsonaro afasta a discussão que o Brasil, lamentavelmente, ainda não deu conta de cobrar.

A ideia da inevitabilidade e antecipação foi posta em ação na sua live da quinta-feira 6 de agosto. O presidente pergunta ao general da Saúde que está ao seu lado se o país já vai chegar às 100 mil mortes pelo vírus. O tom é meio distraído, como se realmente estivesse alheio. E comenta:

“A gente lamenta todas as mortes. Está chegando ao número 100 mil talvez hoje, não é? Mas vamos tocar a vida e encontrar uma maneira de se safar desse problema.”

Safar do problema é reafirmar que o problema não lhe pertence. As mortes seriam um problema político só dos governadores e prefeitos. Assim, a única preocupação do presidente, já manifestada publicamente, é que os mortos, “dos governadores e prefeitos”, não sejam colocados no seu colo.

Eduardo Pazuello o general da ativa que faz o papel de ministro da Saúde, também comentou na live, comparando, sem corar, a pandemia da Covid-19 com o HIV.

“O HIV continua existindo, algumas pessoas são contaminadas, muito se tratam. Vida que segue. É assim que vai ser com o coronavírus”.

“A vida segue”, “vamos tocar a vida”, esses são os argumentos do presidente da República e do ministro da Saúde para explicar a “desimportância” da pandemia que mata milhares de brasileiros: é uma coisa normal, natural. Um problema que não lhes diz respeito. A missão de esvaziar a repercussão foi feita construindo um muro de proteção entre o governo e a realidade.

Além da evidente estratégia de escapar do foco, a omissão da responsabilidade que lhe cabe no enfrentamento da pandemia, a cena reforça traços do caráter do presidente: o cinismo, o deboche e o desprezo pela vida do Outro. A vida, do Outro, é um bem descartável. A morte pela Covid é, para ele, um mero estorvo político a ser driblado.

Vale lembrar a única crítica feita por Bolsonaro ao desempenho da ditadura militar no Brasil: “O erro da ditadura foi torturar e não matar” (entrevista à rádio Jovem Pan, junho de 2016). E o mote com que ele animava seus seguidores durante a campanha eleitoral de 2018: “Vamos fuzilar a petralhada”.

Essas cenas de esperteza diversionista só reforçam que ele sabe o que tem pela frente, e tenta empurrar com a barriga. “Esperteza, quando é demais, engole o dono.”, diz o velho ditado. Cedo ou tarde, Bolsonaro terá que prestar contas aos mortos e das mortes dos brasileiros vítimas do coronavírus.

Desde o início da pandemia, ministros do STF alertaram o presidente sobre as implicações legais e políticas da sua omissão de comandar o país no enfrentamento da pandemia. Um dos ministros, Gilmar Mendes, chegou a falar em crime de genocídio. Jair Bolsonaro não escapará do julgamento da sua responsabilidade, em tribunais e nas urnas.

Pedro Pinto de Oliveira, Doutor em Comunicação pela UFMG, pesquisador associado da UFMT e jornalista colaborador do pnbonline.com.br



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