Vamos voltar ao futebol aqui no Grislab, que já marcou um golaço com o Diário da Copa, durante a famigerada competição. Agora entramos em campo com Cruzeiro e Atlético, mais do que nunca, dois ícones do futebol nacional, não só pelo desempenho no campeonato brasileiro de futebol na série A, no qual podem chegar entre os primeiros colocados, mas ainda também pela final na Copa do Brasil. Como os respectivos goleiros Fábio e Victor vamos para a defesa: como incluir as marcas sonoras urbanas como elementos para análise de acontecimentos como os jogos de futebol? Em especial os jogos mais recentes envolvendo os dois times na história e inédita decisão da Copa do Brasil? Um pequeno prâmbulo se faz necessário.
Anos atrás, durante uma feira do livro na Serraria Souza Pinto, em mesa sobre futebol e literatura, o cronista José Roberto Torero – se não me falha a memória – repercutiu uma ideia acerca do caráter “apolíneo” do futebol paulista versus o caráter “dionisíaco” do futebol carioca: São Paulo teria um futebol mais “racional”, “cerebral”, “técnico”, que busca entender a tática adversária e dominá-la em campo. Os times do futebol carioca seriam mais “emocionais”, “subjetivos”, “instintivos”(vale notar que as aspas aqui indicam ressalvas conceituais e não citações literais ao que Torero expôs – além da singular generalidade no caso paulista e das específicas pluralidades, no caso carioca). Sabemos ainda que há muita variação a partir desta oposição simples entre Apolo/racional e Dioniso/emocional – o próprio Friedrich Nietzsche, que propôs a tese inicial em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia, já faria uma revisão no livro seguinte, Humano Demasiado Humano.
Então é curioso perceber como se verifica uma repercussão na mídia sobre a crise do futebol brasileiro, indicada, não por acaso, desde a fragorosa derrota na Copa do Mundo ante a Alemanha. Aliás, pôde-se constatar em comentários aqui e acolá como que a seleção germânica conseguiu o título porque soube combinar, senão ceder, o estilo apolíneo de seu jogo às diatribes dionisíacas que – alguns até se apressaram em dizer – conquistadas a duras, ops, moles penas graças a uma certa osmose tropicaliente brasileira. Ou seja, a Alemanha ganhou no Brasil – e do Brasil – porque se abrasileirou desde antes da competição. Antropofagizou o país antropofágico. OK, mas nossa análise não vai por essa linha.
É curioso perceber como, ante a crise do futebol paulista e carioca, ops, “brasileiro”, Cruzeiro e Atlético, líderes nas competições de ponta do esporte no país, trazem para o futebol “mineiro” agora o duelo Apolo e Dionisio do futebol no país. O Cruzeiro é apresentado como essa força “apolínea” do futebol nacional, enquanto o Atlético se consagra na ponta “dionisíaca”.
Daí vale a pena convocar uma curiosa e apropriada passagem de R. Murray Schafer logo no início de seu “A afinação do mundo” sobre o que chama de “conceito dionisíaco versus o conceito apolíneo de música”. “No primeiro desses mitos, a música surge como emoção subjetiva; no segundo, é o resultado da descoberta das propriedades sonoras dos materiais do universo (…) no mito dionisíaco, a música é concebida como um som interno, que irrompe do peito do homem; no mito apolíneo, ela é compreendida como som externo, enviado por Deus para nos lembrar a harmonia do universo. Na visão apolínea, a música é exata, serena, matemática (…). Na visão dionisíaca, a música é irracional e subjetiva.” (SCHAFFEUR, 2011, p.21)
Mas o próprio Schaffeur e sua não de todo polêmica proposta de uma ecologia sonora mundial ficaria ruborizado talvez em tentar acompanhar, apenas sonoramente, jogos de Atlético e Cruzeiro em Belo Horizonte. Tudo bem que já não falamos de música, mas de algo mais amplo acerca das paisagens sonoras envolvendo as partidas dos times. Definido pelo autor como “qualquer campo de estudo acústico”, podendo ser i)uma composição musical, ii)programa de rádio ou iii)ambiente acústico, as paisagens sonoras ou sonografias muitas vezes compreendem as diversas camadas sonoras deste ambiente – que podem unir, precisa e simultaneamente, os três exemplos acima mencionados.
Pois bem, um belo exercício para verificar estas marcas sonoras foi acompanhar o acontecimento da semifinal da Copa do Brasil, na quarta, dia 5/11 em que Cruzeiro e Atlético, em jogos disputados, venceram e rumaram para a final histórica.
Primeira marca: estar em uma pizzaria onde não há qualquer aparelho de TV no momento inicial do jogo. Celulares em punho nas mesas vizinhas, ouço uma reclamação do cliente ao lado ao garçom: “como assim não há qualquer aparelho de TV aqui pra gente ver o jogo?” – curiosa imposição contemporânea, aliás, aos bares da capital belo-horizontina que merecem análise posterior.
O burburinho da ansiedade é aumentado pelos gritos de um e outro time no bar exatamente situado do outro lado da rua, que já possui vários aparelhos de TV. Buzinas também ocupam o ambiente quando ocorre o primeiro gol. De volta para casa, na região do bairro Funcionários na capital, é possível examinar/ouvir melhor as marcas sonoras do acontecimento: alternância, dos dois times, de gritos isolados das janelas de apartamentos durante a noite evocando o nome ou a alcunha dos clubes em meio a outros buzinaços, foguetes e rojões (que ainda vão seguir de modo mais ocasional e esporádico no dia seguinte, sendo seguidos por novos gritos isolados – desta vez provenientes dos trabalhadores da construção civil, do alto dos prédios). Palavras de ordem, novos buzinaços, rarefações musicais dos hinos, em carreatas.
Mas aqui, vale dizer, estamos falando já de alguns momentos seguintes ao gol ou ao jogo vitorioso. Para mim o mais intrigante são os segundos posteriores ao gol, à irruptura do silêncio da cidade em que todos estes elementos: vozes, gritos, buzinas, foguetes, rojões (que nos instantes seguintes vão acontecer aqui e ali) irrompem no breve silêncio urbano como uma pororoca, quando não um tsunami, sonoro numa imperfeita, porém incrível, concertação acústica. Imaginem então o exercício de acompanhar isto naquela quarta feira de quatro gols para o Atlético e três para o Cruzeiro: não demorei muito para romper com a própria proposta para buscar a informação, pois já me era impossível adivinhar qualquer tipo de placar – e incorporei a sonoridade do rádio na paisagem sonora dos cinco minutos finais para uma situação àquela ansiedade. Não havia dúvidas: no acontecimento do jogo decisivo, cruzeirenses e atleticanos empatam o jogo – sempre são movidos, senão possuídos, pelas forças dionisíacas.
Nísio Teixeira
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisador do Gris/UFMG
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