Análise | Poder e Política

As “perguntas-acontecimento” a Bolsonaro: quando a apuração jornalística vira alvo de ameaças e ataques

Diante de questionamentos incômodos, a truculência cínica e vulgar de Bolsonaro revela uma estratégia militar: o governante revida perguntas com ataques e mostra o quanto é despreparado para o cargo que exerce.

Conversa com imprensa após Audiência em 15 de janeiro de 2020. Foto: Marcos Corrêa / PR

Embora atritos entre presidentes e órgãos de comunicação não sejam novidade, a forma e a intensidade dos ataques à imprensa é uma marca do governo bolsonarista. Ameaças das mais variadas são proferidas      aos veículos – desde a não renovação de concessões, passando pela retirada de verba publicitária oficial para órgãos de imprensa em especifico, ou até a tentativa de descredibilizar o trabalho feito por certos jornais, acusando-os de disseminar fake news. A investida fica ainda mais truculenta, entretanto, quando vem em resposta a temas incômodos, como suspeitas envolvendo seus familiares. Diante desse tipo de questionamento, o presidente tem interrompido entrevistas e desrespeitado jornalistas, muitas vezes pessoalmente.

No último dia 23 de agosto, uma pergunta feita por jornalista do O Globo irritou especialmente o presidente, que respondeu com a ameaça: “a vontade é encher tua boca com uma porrada, tá?”, quando foi questionado sobre os depósitos feitos pelo ex-policial militar Fabrício Queiroz na conta de Michelle Bolsonaro.

Investigado pelo esquema das “rachadinhas”, em que salários de servidores eram repassados para integrantes da família presidencial, o ex-acessor de Flávio Bolsonaro, Fabricio Queiroz, e sua esposa, Márcia Aguiar, depositaram R$89 mil em cheques na conta da primeira-dama presidencial, entre 2011 e 2016.

A pergunta pelos 89 mil reverberou por semanas e gerou desde memes e charges, até o posicionamento de políticos e celebridades. A ameaça ao jornalista provocou uma série de críticas nas redes sociais, com um tuitaço indagando: “Jair Bolsonaro, por que Queiroz depositou 89.000 na conta da primeira-dama?”. Após o ocorrido, o presidente voltou a atacar a imprensa e referiu-se a jornalistas como “bundões” que morreriam caso contraíssem a Covid-19.

Este caso de desrespeito ao trabalho da imprensa em agressões pessoais, entretanto, não é isolado. Outro exemplo emblemático ocorreu quando Bolsonaro disse, em fala homofóbica, que um repórter tinha uma “cara de homossexual terrível” e mandou jornalistas ficarem quietos, quando questionado sobre a busca e apreensão realizada pela PF em endereços do senador Flávio Bolsonaro, em 20 dezembro de 2019. O caso foi manchete de jornais nacionais e internacionais.

As respostas do presidente quando indagado sobre o coronavírus e as medidas de contenção à doença também geraram uma coleção de frases grotescas e agressivas que atestariam a falta de educação e de humanidade de qualquer um, se ditas por um cidadão comum. Ditas pelo mandatário de uma nação, atesta a pobreza de ambos. Em março, perguntado sobre como o Brasil se preparava para enfrentar a pandemia, ele responde com o desdém da “Gripezinha, resfriadinho”; perguntado pelo recorde de mortes em abril, ele retruca: “E daí?”; “Ô ô ô cara, eu não sou coveiro, tá?”. Em junho, ele revida a pergunta de uma mulher sobre as mortes dizendo-lhe “cobre do seu governador”. E no dia 1 de setembro a Secom colocou no ar uma campanha publicitária com a frase do presidente: “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.

Esse tipo de frase – misto de cinismo, grosseria, vulgaridade – marca a trajetória de Bolsonaro como deputado (“pau-de-arara funciona. Sou favorável à tortura, tu sabe disso”), sua campanha como candidato em 2018 (“vamos fuzilar a petralhada”), seu primeiro ano de governo, em 2019 (“o que é golden shower?”).

Nosso objetivo aqui não é repertoriar suas lastimáveis frases – que podem ser encontradas em um rápido levantamento através da internet – mas enfatizar sua postura e chamar a atenção para o significado desse jogo de perguntas-e-respostas. O linguista John Austin trouxe importantes contribuições sobre os “atos de fala”: falar é fazer alguma coisa, é agir no mundo; palavras provocam modificações. Quando falamos, passamos uma imagem de nós mesmos, damos forma ao que falamos, posicionamos nosso interlocutor. Bolsonaro se revela nas frases que diz, e na maneira como reage às questões que lhe são dirigidas. É agressivo com a imprensa porque não sabe / não tem o que responder. Ou, em alguns casos, sabe que a resposta é pior do que o não dizer. Então toma as perguntas como provocação – pois elas exigem dele um posicionamento, e busca reverter a situação. Usando a tática militar de que o ataque é a melhor defesa, ele (não) responde atacando. E as “pérolas” que profere ocupam o lugar da resposta.

Só que esse tipo de resposta diz muito de quem ele é.  Esses atos de fala (agressiva) substituem outros que ele, presidente, não executa. Então as perguntas dos repórteres (ou dos cidadãos) se tornam acontecimentos: elas mostram o quanto o rei está nu.

Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação Social/ UFMG e pesquisadora do GRIS



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