“Acidente” e fatalidade? Ou “tragédia anunciada”, “crime”, “negligência”? A análise mostra as diferentes formas como o que aconteceu em Mariana foi sendo definido em diferentes discursos, e como a disputa pelo enquadramento do acontecimento é fundamental para o debate público, para a definição de ações e de responsabilidades sobre o ocorrido.
Naquela quinta-feira, 05 de novembro de 2015, vi e ouvi as primeiras informações sobre o rompimento de uma barragem em Mariana/MG através dos telejornais da noite: um povoado inteiro tragado pela lama dos rejeitos de minério de ferro da Samarco. O distrito de Bento Rodrigues parecia uma imagem fantasma.
Impossível não se afetar por aquelas imagens. Impossível impedir as lágrimas nos olhos e o aperto no peito, imaginando o desespero e a dor das pessoas que viam suas vidas e histórias sendo tragadas pela violência da avalanche de lama. Nunca vi algo semelhante no Brasil. As imagens de Bento Rodrigues fizeram recordar, na minha casa colombo-brasileira, a tragédia de Armero, na Colômbia, transformada em “cidade fantasma” em 13 de novembro (!) de 1985. Lá, foi uma catástrofe natural, provocada pela lava e o lodo de um vulcão adormecido. E em Mariana, o que aconteceu? O que provocou aquela tragédia? Como interpretar o acontecimento?
As notícias da cobertura midiática inicial sobre esse desastre não dão conta de explicar o acontecimento – suas causas, responsabilidades e, menos ainda, suas consequências. “Acidente”, “trágico episódio”, “tragédia em Mariana” são algumas das formas com as quais o acontecimento começou a ser descrito. Ninguém conseguia dizer ao certo o que estava acontecendo, o que teria causado o rompimento da barragem da Samarco, empresa controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP.
Paralelo às ações e reações suscitadas pelo ocorrido, à comoção nacional, à solidariedade das doações e da chegada de voluntários a Mariana – que marcam o dia seguinte da cobertura midiática do desastre -, outro quadro interpretativo começa a ser acionado para explicar o acontecimento. A possibilidade de um “terremoto” ou “sismo” ganha corpo e difusão na voz de pessoas da região, mas principalmente na de especialistas convidados para entrevistas.
Outras vozes, porém, contrapõem-se a esse enquadramento de catástrofe natural para explicar o rompimento das barragens, e vão evidenciar, nos dias seguintes, formas distintas de enquadrar o que aconteceu. Não foi um acidente, uma fatalidade, ou um abalo sísmico. Foi “negligência” da Samarco, conforme a Promotoria do Meio Ambiente de Minas Gerais. Outros discursos – em espaços de discussão como as redes sociais digitais ou nos comentários de leitores a narrativas midiáticas que continuam, intencionalmente ou não, nomeando o acontecimento como “acidente” – classificam o que aconteceu como “tragédia anunciada” e “crime”, cobrando responsabilizações e penalizações.
O enquadramento de um acontecimento, como nos ensina o sociólogo Erving Goffman, tem uma dimensão cognitiva (compreender/interpretar o que está acontecendo), mas também prática (se posicionar e atuar na situação). Enquadrar o que aconteceu em Mariana como “acidente” e catástrofe natural ou, por outro lado, como “negligência”, “tragédia anunciada” e “crime” faz toda a diferença em termos de debate público, de possibilidades de ação e de valores que os sustentam. No primeiro caso, remete à fatalidade, a causas naturais, sobre as quais pouco se pode fazer. Nos outros, remete à possibilidade de ação e de cobrança de responsabilidades – públicas, institucionais – sobre o que aconteceu, sobre suas consequências, sobre o que se pode e deve fazer para amenizar o impacto socioambiental que a “onda de lama” ou “tsunami marrom” deixa por onde passa, além de prevenir outras ocorrências semelhantes.
Neste sentido, a própria cobertura midiática do acontecimento, suas narrativas e formas de enquadrar o que acontece, passa também por fortes questionamentos, na medida em que deve ser uma fonte fundamental para alimentar uma séria discussão pública e definição de ações para tratar o acontecimento e suas consequências.
Terezinha Silva
Professora colaboradora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do GRIS
Confira as outras análises do “Dossiê Mariana”:
Omissos, oportunistas e “funcionários do mês” (Gáudio Bassoli)
Rio Doce – Muito além de Bento Rodrigues (Raquel Dornelas)
O alto preço da fatura (Vera França)
Mobilização – Redes de afeto em torno do acontecimento (Marta Maia)
Esta análise compõe o “Dossiê Mariana” e faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de novembro, definido em reunião do Grislab.
[…] da sirene remeteu ao passado trágico recente, de rompimento de barragens nas cidades mineiras de Mariana e Brumadinho. Mesmo com essa realidade, das 11 pessoas entrevistadas, apenas duas se mostraram […]