Em meio à maior crise sanitária mundial da nossa época, a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), muitas vezes posta em questão, bem como a imensa desigualdade social do Brasil, são escancarados em suas feridas mais profundas.
O SUS é, basicamente, a garantia de que a saúde pública é um direito individual de todo brasileiro, independente de sua condição financeira, em qualquer nível de complexidade. Segundo a Constituição de 1988, é dever do setor público prover a qualidade desse direito. O subfinanciamento do referido Sistema, entretanto, é uma questão estrutural, que piorou em 2016, com a Emenda Constitucional 95. A chamada “emenda do fim do mundo” é responsável por congelar os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, o que atinge diretamente a educação e a saúde pública no país, e torna o combate ao coronavírus um desafio ainda maior.
Por um lado, o SUS é, muitas vezes, lembrado por imagens insalubres de macas nos corredores e filas de doentes nas portas dos prontos-socorros, fruto desse pouco investimento que recebe. Por outro lado, ele também é quem oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo, para focar em apenas dois exemplos. Isso sem contar com a Estratégia Saúde da Família, que é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos mais importantes projetos de saúde existente.
A importância desse sistema fica ainda mais evidente na crise sanitária de proporções globais que estamos vivendo. Antes ferrenho defensor da privatização do Sistema, o ex-ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, diante da crise do coronavírus, literalmente vestiu o colete do SUS. Tal atitude ilustra bem a situação em que vivemos e evidencia que os interesses financeiros não combatem pandemias — a gestão do estado é fundamental. Ainda que a doença atinja de forma bem diferente as diversas classes sociais, devido às condições de vida extremamente insalubres a que é submetida a população mais pobre no Brasil, ainda é possível vislumbrar algum tratamento para essa parcela da população, caso o Sistema não colapse. Para enfrentar uma doença altamente transmissível, ignorar os pobres, para além de irresponsável e completamente insensível, beira à insanidade.
Com o SUS, a nossa situação é bem diferente da situação dos Estados Unidos, por exemplo, maior símbolo do capitalismo no mundo. No país, que não possui um sistema de saúde público, são os negros que mais morrem por Covid-19. Negros, sim, porque ainda são os mais pobres os que são escolhidos para morrer, segundo a lógica da necropolítica, desenvolvida por Achille Mbembe* e assumida pela sociedade neoliberal. Há, portanto, uma ampliação do grupo de risco que engloba aspectos financeiros. Uma das grandes diferenças do sistema de saúde norte-americano para o nosso é que o sujeito sem condições financeiras precisa se endividar para ter acesso a alguma assistência. Decorre disso a grande quantidade de pessoas que opta por não procurar ajuda de profissionais de saúde diante de alguma doença ou que, em uma situação extrema, acaba morrendo em casa, evitando deixar enormes dívidas hospitalares como herança.
Uma das características mais cruéis do neoliberalismo é o autocentrismo, o egoísmo — a regra é que cada um “se vire” sozinho. Acontece que, em uma pandemia coma a que estamos vivendo, só existem saídas coletivas. A naturalização das mazelas sociais do país de escalas continentais e da desigualdade com que convivemos por décadas é escancarada — não podemos mais fingir que não vemos o outro, distante e assustador, a que Slavoj Zizek** faz referência, porque depende do coletivo o combate a questões que nos afetam individualmente.
Para além da dor irreparável, a esperança é que o futuro depois da pandemia seja mais solidário. Um dos desejos é que a crise sanitária provocada pelo Covid-19 reverbere de alguma forma positiva e que a saúde pública passe a ser valorizada e assumida como responsabilidade e direito de todos. Além disso, a esperança também consiste na expectativa de que sistemas como o SUS sejam valorizados pelos brasileiros, preservados e motivados pelos governantes e copiados pelo mundo.
*MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. N-1 edições, 2018
**ZIZEK, Slavoj.Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação Social/ UFMG e pesquisadora do GRIS