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Fake news: é possível extirpá-las?

Apesar de não ser um fenômeno tão novo, a difusão das chamadas fake news no Brasil ganha proporções antes inimagináveis, mas só suscitam reações efetivas quando “pisam no calo” de grandes instituições, como Congresso e Supremo.

Charge: Vanes

Fake news é uma expressão que se consagrou recentemente para nomear uma ocorrência, infelizmente muito antiga e muito frequente, que é a distorção de fatos e/ou criação de mentiras como arma política para combater adversários. Lembrando fatos não muito longínquos, na eleição de 1989 para presidência da República, Fernando Collor, no famoso debate entre os candidatos editado pela Globo, decidiu a campanha a seu favor manipulando a história da filha de Lula fora do casamento.

Os anos se passaram, o teor e a proporção das mentiras chegaram a níveis inacreditáveis em toda parte, intensificado pelo uso de dados pessoais e de “psicográficos” para a promoção de projetos de extrema-direita. Este é o caso da Cambridge Analytica, que, com o uso ilegal de dados do Facebook, ajudou e muito as campanhas pró-Brexit no Reino Unido e Donald Trump nos EUA. Estratégia semelhante foi utilizada na eleição de Bolsonaro, que se apropriou de informações disponíveis em redes sociais para direcionar fake news de forma industrial e muito eficaz.

Particularmente no Brasil, para além da distorção, criações deslavadas passaram a protagonizar a disputa política. Nas eleições de 2018, a produção de notícias falsas dirigidas à candidatura do PT- PCdoB atingiu padrões industriais e foi também decisiva no resultado das eleições. É triste e vergonhoso relembrar casos como o kit gay e a mamadeira de piroca, atribuídos ao candidato Fernando Haddad, os ataques perversos sofridos por sua vice, Manuela d’Ávila. Na época, denúncias insistentes não suscitaram nenhum ato de defesa por parte do Supremo Tribunal Federal (STF).

A vitória de Bolsonaro não pôs fim à máquina de mentiras dos bolsonaristas; ao contrário, ela se instalou no próprio Palácio do Planalto, com a criação do “gabinete do ódio”, dirigido pelo filho 01 do presidente. E foi apenas quando o alcance das injúrias e falsidades ultrapassou a linha do PT e da esquerda, atingindo o Congresso e o STF, que medidas preventivas começaram a ser tomadas.

Em outubro de 2019, foi criada no Congresso uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar a disseminação de fake news, presidida pelo senador Ângelo Coronel (PSD-BA). Essa Comissão ouviu depoimentos importantes de ex-aliados do presidente, como os deputados federais Alexandre Frota e Joice Hasselman (que conheciam e participaram da rede de mentiras no momento da campanha). No entanto, até o momento, nenhum resultado efetivo foi alcançado. Paralelamente, está tramitando no Congresso o PL (projeto de Lei) 2630/20, que trata do combate às notícias falsas em redes sociais e serviços de mensagens – um texto polêmico, já aprovado pelo senado, e que suscita preocupações por parte de empresas e grupos ligados ao setor.

No âmbito do STF, também em 2019, injúrias dirigidas ao ministro Dias Toffoli, então presidente do Supremo, levaram à criação do inquérito das fake news (Inquérito nº 4781), relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, para investigar a disseminação de conteúdo falso na internet e ameaças aos ministros do STF.  

O inquérito nº 4828 DF, também relatado por Alexandre de Moraes, foi aberto em maio deste ano, para analisar manifestações antidemocráticas e disseminação de mensagens que atentam contra o Congresso e o Supremo.  Esse inquérito toma como ponto de partida o evento de 19 de abril passado, quando Bolsonaro participou de ato em frente de quartel em Brasília e pediu intervenção militar e fechamento do congresso; seu objetivo é identificar os organizadores, as articulações e formas de propagação e de financiamento daquele movimento. Dele resultou uma operação contra parlamentares, empresários e ativistas ligados ao presidente Bolsonaro, visando identificar uma rede criminosa que incita a violência e atenta contra instituições e pessoas. Entre os citados estão o empresário Luciano Hang, o ex-deputado e presidente do PTB, Roberto Jeferson, o blogueiro Allan dos Santos (que agora fugiu para os Estados Unidos). A medida permitiu violar o sigilo bancário, a busca e apreensão de documentos em endereços ligados aos suspeitos, e a suspensão de perfis no Facebook e contas no Twitter.

Apesar das ameaças e pressões junto ao ministro Alexandre de Moraes, e protestos do próprio presidente Bolsonaro, a operação continua. Foram cumpridos mandados em vários estados; o fechamento de contas e perfis gerou uma tensão com o Facebook, que inicialmente se negou a fechar contas abertas a partir do exterior, mas Moraes continua firme. Mas tais iniciativas do STF poderão conter a ação dos bolsonaristas, que têm na estratégia de disseminação de notícias falsas, ameaças e incitação à violência através das redes sociais sua principal arma?

Esse cenário das fake news e das medidas para contê-las nos permite chegar a algumas conclusões:

  • as instituições (Congresso, Supremo) se moveram, e se moveram lentamente, apenas quando foram atingidas diretamente; ataques recorrentes a pessoas e partidos da esquerda vinham sendo negligenciados e invisibilizados junto à grande mídia;
  • a ação de combate ao gabinete do ódio e à rede de fake news se confronta com interesses poderosos – não apenas do presidente, mas dos grupos que o apoiam (no Brasil e fora dele);
  • mentiras, incitação ao ódio e à violência não foram apenas as armas que Bolsonaro utilizou para ganhar as eleições: elas constituem também seu modo de governar.

Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação Social/ UFMG e pesquisadora do Gris



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