Análise | Movimentos sociais e ativismo Poder e Política

Interfaces entre a rua, a poética da escrita e a política

As manifestações que ocorreram nacionalmente entre junho e julho de 2013 foram marcadas, dentre outros inúmeros fatores, pela transformação das ruas em cenas conflitivas de enunciação e demonstração de diferentes tipos de injustiças percebidas e sofridas por grupos e indivíduos que as nomeraram em uma multiplicidade de cartazes, faixas e bandeiras. É possível afirmar, a partir das reflexões de Jacques Rancière (1995, 2000, 2004, 2011), que tais manifestações revelaram uma poética de criação dessas cenas, da emergência de mundos nos quais sujeitos e objetos antes não figurados se tornam visíveis e suas palavras são consideradas através, sobretudo, da escrita.

O registro escrito e criativo das demandas dos manifestantes em cartazes pode ser avaliado, na perspectiva de Rancière (1995), como um ato que dissocia o corpo da palavra proferida, libertanto o enunciado dos modos legítimos do falar e do ouvir. As palavras escritas nos cartazes podem ser apropriadas por qualquer um, configurar nova cena de fala, colocar-se à disposição, além de caracterizar a indeterminação simultânea da referência original do enunciado e da identidade do enunciador. A escrita é aquilo que, ao separar o enunciado da voz que o enuncia e ao buscar legitimidade no encontro com outro (ainda que este outro não se disponha a considerá-la), vem embaralhar qualquer relação ordenada do fazer, do ver e do dizer.

A escrita, inscrição daquilo que a comunidade considera como comum (as leis e as demandas vindas de esferas cívicas) e como distintivo, pode ser considerada como uma dimensão poética da política. Segundo Rancière, a política possui uma poética que se traduz na construção/invenção de um espaço comum ou cena relacional que não existia previamente. A poética da política, além de ser um desafio à oposição entre interlocutores legítimos e ilegítimos, remete à invenção da cena de interlocução na qual se inscreve a palavra do sujeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui.

Os momentos poéticos da política envolvem as ações criativas e comunicativas de linguagem que desafiam as divisões entre capacidade e incapacidade, entre aqueles que estabelecem as regras e aqueles que as seguem, entre aqueles que são contados como parte efetiva de uma comunidade e aqueles que não são considerados como interlocutores. Por isso, a poética da política diz respeito à configuração de um espaço específico no qual objetos são dispostos em comum a partir de uma decisão ou vontade comum, e no qual sujeitos são reconhecidos como capazes de designar esses objetos e de argumentar acerca deles.

A instituição da democracia, aponta Rancière, significa a invenção de uma nova topografia, a criação de um espaço feito de espaços desconectados contra o espaço homogêneo e hierarquizado do consenso político. O espaço da política é o espaço do “aparecer” de um sujeito, de grupos articulados, do cidadão: sua poeticidade está na constante redefinição de quem pode aí figurar, daquilo que pode ser dito e visto, assim como daquilo que pode ou não receber um nome ou múltiplos nomes.

Nas manifestações, a criação de cenas dissensuais a partir da escrita (letra dissociada da identidade do enunciador), da ocupação das ruas e de sua transformação em espaços de enunciação e encenação política, nos conduz a refletir sobre a constituição do sujeito político atual. Inicialmente, em seu processo de socialização, ao sujeito é conferido um nome que indica o modo como deve tomar parte no comum. Mas suas ações e experiências evidenciam que, ao nomear um dano, ao escrevê-lo (de forma irônica, usando humor, provocando e convocando um interlocutor qualquer) o sujeito se aproxima e se distancia do nome anteriormente conferido, configurando uma relação política que não é uma relação entre sujeitos, mas entre dois termos contraditórios que definem um sujeito.

Apreendidas em sua dimensão de registro escrito daquilo que contraria e que se constitui como problema público, as manifestações revelam como acontecimentos de caráter insurgente como esse estão ligados a capacidades enunciativas e demonstrativas dos sujeitos que, ao oferecerem enunciados aos outros, instauram uma interação comunicativa e uma cena polêmica. Ainda que na maioria das vezes tal interação não conduza ao diálogo, ela tem o importante papel de sinalizar um dano, uma injustiça e de sensibilizar a sociedade para sua existência.

 Foto: Outra política

Angela Marques
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisadora do Gris/UFMG

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Comentário

Minha colega demonstrou competência e adequação ao utilizar os conceitos para balizar sua análise. Gostaria de partilhar da sua visada mais otimista, entretanto, minha opinião a cada dia é mais crítica a esse respeito. A falta de continuidade de reinvindicação nos meses que se seguiram a essas manifestações que, efetivamente, conseguiram poucas conquistas (talvez a maior delas tenha sido a percepção de que o Congresso pode funcionar bem sob pressão) sugere que os insatisfeitos que tomaram as ruas já foram reintegrados à ordem já estabelecida. Como ainda não sabemos ao certo quais razões motivaram essas manifestações, também é difícil definir sua potência política, principalmente se considerarmos que a configuração da sociedade não foi alterada de forma definitiva ou mesmo aparente. Em junho de 2014 teremos uma boa oportunidade de descobrir se o gigante vai interromper seu sono, deixar o berço esplêndido e se manifestar novamente e a partir daí, novas conclusões poderão ser construídas.

André Melo
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisador do Gris/UFMG



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