Mais uma vez, a participação do presidente brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas provoca constrangimento ao país. Com um discurso marcado por mentiras, ataques à imprensa e pela denúncia de supostos interesses internacionais na Amazônia, Bolsonaro apresenta um cenário de seu governo sem qualquer correspondência com a realidade.
Em 22 de setembro, Bolsonaro proferiu o discurso de abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas. Mesmo sendo lido à distância, causa constrangimento.
Tradicionalmente, o Brasil abre a Assembleia da ONU; então, independente da importância do país e do renome de seu representante, seu discurso é ouvido por todos e alcança grande repercussão. Infelizmente, neste caso, repercussão negativa na imprensa do país e do mundo, porque recheado de inverdades, acusações e repetição de seu credo ideológico.
Em seu discurso, seu governo se apresenta conduzindo muito bem o combate à pandemia (com auxílio gigantesco às pessoas e às ações de saúde e socorro – incluindo o cuidado com populações indígenas), ao mesmo tempo que mantém pujante sua economia. Ele destaca que o Brasil é um dos maiores recebedores de investimentos diretos no mundo; desponta como o maior produtor mundial de alimentos; aposta na abertura comercial, adaptada às novas realidades internacionais; destaca-se pela preservação ambiental; investe na cooperação entre países, nas operações de paz, defende a liberdade e a prevalência dos direitos humanos.
Ou seja: estamos no melhor dos mundos. Mas o mundo todo sabe que não é bem assim, e é no mínimo corajoso, da parte do presidente, tentar passar uma imagem com tão pouco respaldo na realidade. No que toca à pandemia, nessa mesma semana em que o presidente discursava nas Nações Unidas, o Brasil figurava como o segundo país no mundo em número de mortos pela doença, creditados não apenas à falta de uma política de combate centralizada, mas sobretudo às atitudes negacionistas do presidente. E quanto à economia, a crise é profunda: o índice de desemprego nunca esteve tão alto, a dívida interna explodiu, e a porteira se abriu para medidas antissociais, antiambientais, ataques persistentes às universidades, junto com a venda criminosa do patrimônio público.
Encobrindo tudo isso, o presidente apresenta culpados para problemas que são mais evidentes. O primeiro deles é a imprensa, que, enfatizando o “fique em casa”, “politizou” o tratamento da pandemia e “quase trouxe o caos social ao país”.
A imprensa também é responsável por “uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”, em conjunto com instituições internacionais e associações brasileiras “aproveitadoras e impatrióticas”, agindo em nome de “interesses escusos”.
O combate à pandemia foi delegado aos 27 governadores de estado – o governo federal deu os recursos, no mais seria responsabilidade deles.
Incêndios, apenas periféricos, na Amazônia e Pantanal, foram provocados pelo caboclo e pelo índio, que queimam seus roçados.
No que toca à preservação ambiental, e apesar de iniciar um programa pioneiro de Combate ao lixo no mar, “em 2019 o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano”.
Aliás, enfatizando duas vezes a Venezuela, o presidente destaca ainda que o Brasil vem sendo “referência internacional pelo compromisso e pela dedicação no apoio prestado aos refugiados venezuelanos”, “deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana”.
Essa dupla menção à Venezuela, assim como a saudação ao presidente Trump e a menção aos países amigos, Israel e Emirados Árabes Unidos, não são aleatórias. Bolsonaro fez questão de se situar ideologicamente ao lado dos parceiros da direita, e repudiar o fantasma comunista. Completou seu libelo com um “apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”. Fechando, sentencia: “O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base”.
Bolsonaro, mais uma vez, falou para sua claque. Mas palavras sem lastro não convencem. Pregar fake news entre os adeptos é uma coisa. Estampar um discurso enganoso e vazio na Assembleia da ONU é outra. A tribuna da ONU não é órgão informativo nem de discussão e deliberação – é uma instância simbólica. Os discursos revelam força ou fraqueza dos líderes e países. Um presidente se vangloriando do que não é e do que não fez, e apenas se apoiando em seu viés de ultradireita faz triste figura.
Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab
Frances Vaz, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social (UFMG)