De acordo com pronunciamento da Justiça Global e da Coalizão Negra por Direitos em sessão da ONU no dia 30 de setembro, foi registrado um aumento de 800% nos casos de contaminação por coronavírus nas prisões brasileiras desde maio. Tal dado, junto à ausência de medidas efetivas do poder público diante de um sistema já precarizado, nos levam a concluir que talvez este não seja necessariamente um “sintoma” da pandemia no país, mas o próprio projeto de prisão brasileiro.
No dia 4 de julho, um surto de coronavírus no presídio de Manhumirim (MG) matou o detento Lucas de Morais Trindade (28 anos), após ele e mais 161 dos 217 presos (75% do total, portanto) contraírem o vírus. Superlotação, falta de estrutura física para separar presos com sintomas e uma equipe de saúde incompleta foram apontados como principais causas do surto e da morte. A situação foi registrada em reportagem da Agência Pública, mas, longe de ser caso isolado, compõe o cenário de violações vivenciadas por pessoas privadas de liberdade nos presídios do país.
Diante de uma pandemia em que o distanciamento social e a higiene são as principais medidas preventivas, prisões com lotação acima da capacidade, pouca ou nenhuma ventilação e sérias restrições no acesso à água, a atendimento médico e a produtos de higiene, criam um ambiente ideal para propagação do vírus. Junto à inércia do poder público e à ausência de medidas efetivas, seriam verdadeiras “bombas-relógio” prestes a explodir, como anunciado em análise anterior. E explodiram.
De acordo com pronunciamento virtual da Justiça Global e da Coalizão Negra por Direitos na 45ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no dia 30 de setembro, a taxa de letalidade por Covid-19 nos presídios brasileiros é cinco vezes maior do que a de toda a população brasileira. “Deploráveis” foi como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) avaliou as condições das prisões brasileiras e o tratamento do sistema carcerário para frear a proliferação da Covid-19 entre as pessoas em cárcere. Mas, talvez, o estado “deplorável”, isto é, completamente precarizado de tratamento da população presa, não seja necessariamente um “sintoma” da pandemia global no país, mas o próprio projeto de prisão brasileiro, que conta com a terceira maior população carcerária do mundo (são mais de 773 mil pessoas privadas de liberdade, sendo 65% negras). Esse é o argumento (e a luta) de movimentos sociais brasileiros pelo desencarceramento, fortemente participado por familiares de pessoas na prisão. São numerosas denúncias feitas desde o início do período pandêmico: de maus tratos por agentes penitenciários e pelo sistema, falta de água, limitações às assistências dadas aos presos, ocultamento de informações oficiais sobre o vírus. Todas insistentemente apontadas em diferentes frentes estaduais da Agenda pelo Desencarceramento, e acompanhada por organizações observatórias, como o Infovírus/Covid nas Prisões.
A sugestão do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em abril, de “abrigar” presos e presas contaminados em containers — o que, para além de ir contra o direito constitucional dos presos de integridade física, também é o espaço precário propício para que a infecção seja agravada — mostra que, enquanto não há pena de morte na legislação penal brasileira, definitivamente há um complexo aparato estatal que legitima a tortura e a manutenção da indiferença (quando não do incentivo) em relação à vida das pessoas em cárcere. Em outras palavras, enquanto não há a legitimação da morte como punição amparada juridicamente, é difícil não dizer que a morte, por outros instrumentos biopolíticos e até soberanos, não aconteça no sistema carcerário.
A resposta pública da sociedade e do Estado sobre a vida dos presos, antes e depois da pandemia, parece ser a indiferença. O cárcere “nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global”, escreve Angela Davis¹. Devemos, diante desses numerosos e ignorados acontecimentos (e, se há uma luta em jogo, é a luta das famílias e ativistas para que a violência nas e das prisões seja registrada como acontecimento), nos perguntar o que é que, historicamente, nos treina e nos legitima a pensarmos nossas vidas completamente “separadas” e alheias das vidas daqueles atravessados pelo cárcere. Devemos, talvez, questionar o “inquestionável”: especialmente diante da extrema precariedade agravada pela Covid-19 nas prisões, para o quê, de fato, as prisões servem e, caso servem para algo, elas conseguem cumprir sua proposição?
Frequentemente, se argumenta sobre “a educação” como instrumento fundamental para a resolução do que se nomeia “criminalidade”. Mas será que talvez haja um problema educacional também na população raramente punida — a branca, dos grandes centros, longe das periferias, que não são alvos da letalidade policial e do sistema penal? O que podemos fazer sobre a indiferença que possuímos, ou mesmo o prazer obscenamente compartilhado, diante das mães e pais que choram filhos e filhas presos, diante dos corpos que padecem em conjunto no cárcere? Onde e como somos ensinados que a “liberdade” que vivemos nos faz uma sociedade “à parte” daqueles que cometem crimes — e quem nos diz que a única solução diante da “criminalidade” é a punição? Talvez esse seja menos um problema da educação dos corpos criminalizados, e uma ausência de reflexão ética e política dos corpos que endossam a criminalização. Talvez, aqui fora, estejamos vivendo, há décadas ou séculos, uma violenta epidemia da ignorância.
¹ DAVIS, Ângela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018, p. 15.
Lucas Afonso Sepulveda, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Cecília Bizerra Sousa, jornalista, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG e pesquisadora do Gris