Análise | Poder e Política Questões raciais

Homem negro que não acredita em racismo é nomeado para presidir a Fundação Palmares

Sérgio Nascimento de Camargo foi nomeado para presidir a Fundação Palmares — entidade de defesa da população negra. O fato causou grande repercussão midiática, porque, embora ele tenha um posicionamento político à direita, o que é coerente com a atual ideologia política que gere o país, Camargo, que é um homem negro, diz não acreditar em racismo no Brasil e faz diversas publicações polêmicas sobre o tema em suas redes sociais.

O presidente Jair Bolsonaro entre Sérgio Camargo, no momento afastado na Fundação Palmares, e o secretário de Cultura, Roberto Alvim Foto: Reprodução

Criada pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de agosto de 1988, a Fundação Cultural Palmares foi o primeiro organismo do executivo federal a dedicar-se às demandas do movimento negro, fomentando também a cultura e as manifestações artísticas e culturais.

A nomeação para a sua presidência, feita no dia 27 de novembro, foi noticiada amplamente e foram destacados os posicionamentos controversos de Sérgio em suas redes sociais. Ele, que é jornalista, já postou no Facebook por exemplo que é contrário às cotas raciais.  Também é contra à existência do “Dia da consciência Negra”, porque, segundo ele, foi uma “data criada pela esquerda para propagar o vitimismo”. Camargo afirmou em um de seus posts que Zumbi dos Palmares (líder quilombola e o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial) foi um bandido, inimigo do povo negro”. Para completar, afirmou que a vereadora Marielle Franco (assassinada em 2018) não era negra, mas sim “mulata”, e que as pautas que ela defendia não representavam os interesses da maioria das pessoas negras.

Para complexificar ainda mais esse cenário, há um outro elemento — com uma pitada psicanalítica — que acentua o estranhamento com a nomeação de Sérgio: ele é filho de Osvaldo de Camargo, de 83 anos, militante do movimento negro e especialista em literatura negra. Osvaldo também foi coordenador de literatura do Museu Afro Brasil, em São Paulo. Participou da primeira edição dos cadernos negros e foi homenageado com a medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara de Salvador.

A repercussão midiática foi intensa, até que, em 4 de dezembro, o juiz Emanuel José Matias Guerra, da 18ª Vara Federal do Ceará, acatou uma ação popular, apresentada pelo advogado, Hélio de Sousa Costa, e suspendeu a nomeação. Na decisão, o juiz entendeu que Sérgio “excedeu” em suas declarações em redes sociais. Dois dias depois, a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu da decisão. Porém, na última quinta-feira, 12 de dezembro, foi divulgado que o presidente Jair Bolsonaro suspendeu a nomeação. O ato foi publicado em uma edição extra do Diário Oficial da União (DOU) com data de quarta-feira, 11 de dezembro. Segundo a publicação, a suspensão ocorreu para cumprir a decisão proferida pelo Juiz da 18ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará no âmbito da Ação Popular nº 0802019-41.2019.4.05.8103/CE, porque, caso contrário, poderia incorrer em descumprimento de ordem judicial. Assim, a polêmica permanece.

A repercussão midiática foi importante para tensionar o governo, entretanto, não podemos esquecer que essa atitude grotesca de nomear para a Fundação Palmares uma pessoa que defende valores completamente opostos aos da entidade, está inserida e alinhada a um contexto de tantas outras indicações que refletem a desconstrução das políticas públicas voltadas para as populações vulnerabilizadas.

Talvez o ponto fora da curva se deva ao fato de Sérgio ser um homem negro e, em razão disso, a cobrança por parte da mídia e dos movimentos sociais possa ter se intensificado. Nos tempos atuais, observamos uma tendência em se esperar que uma pessoa negra tenha, necessariamente, consciência de sua história e papel social. Porém, não podemos desconsiderar, como Djamila Ribeiro nos alerta, que as pessoas subalternizadas também são passíveis de terem uma postura reacionária, assim como qualquer outra. Contudo, por mais que alguns negros e negras sejam reacionárias e acreditem que estejam blindadas de qualquer preconceito, na prática irão continuar recebendo a opressão racista, acreditando ou não no racismo. O mesmo ocorre com qualquer outro grupo que seja vítima de preconceito. Nascer negra não nos faz, necessariamente, uma pessoa empoderada ou consciente de sua própria história. E vale ressaltar que, mesmo negando o racismo, Sérgio permanece sendo negro em um país racista.

Vívian T.N. Campos, Doutoranda em Comunicação pelo PPGCOM/UFMG e jornalista pela UFMG



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