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Prisão em segunda instância, justiça e novo round da disputa política nacional

Em julgamento de idas e vindas desde 2009, o STF decidiu respeitar a Constituição e derrubar a prisão após condenação em segunda instância. A decisão produziu consequências imediatas, como a liberdade para o ex-presidente Lula e a possibilidade de outros réus reivindicarem o direito de recorrer à condenação até a última instância. O debate do tema, porém, está longe do fim.

Supremo Tribunal Federal. Foto: Jorge William / Agência O Globo.

No julgamento mais esperado do ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou no último dia 08 de novembro, por 6 votos a 5, a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Desde a reforma de 2008 no Código de Processo Penal Brasileiro, o debate já passou seis vezes pelo Supremo: em 2009, em três momentos distintos de 2016, em 2018 e agora em 2019. Para além das questões judiciais, a discussão vinha sendo atravessada pela política, tendo alguns ministros mudado de posicionamento conforme o desenrolar dos acontecimentos políticos e de ações da Operação Lava Jato, sobretudo a partir de 2016. No centro das preocupações e interesses, a situação e o futuro do ex-presidente Lula e seus desdobramentos no cenário político brasileiro.

A antecipação da execução de pena é um dos pilares da Lava Jato e faz parte do pacote anticrime do ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, um de seus maiores defensores e responsável pela condenação, na primeira instância da Justiça Federal em Curitiba/PR, do ex-presidente Lula, preso em 07 de abril de 2018 após confirmação da sentença em segunda instância pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4a região, em Porto Alegre/RS). A Constituição de 1988 estabelece o princípio da presunção da inocência, sustentado pelo trecho do artigo 5º que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ou seja, o sentenciado tem direito a recorrer na Justiça até que não seja mais possível a realização de julgamentos em tribunais superiores. Desde 2016, porém, com a intensificação da polarização política do país e da politização do judiciário brasileiro, o STF tinha mudado esse entendimento. Na penúltima votação sobre o tema no Supremo — no contexto da disputa eleitoral de 2018 e da pressão política por parte da Lava Jato e outros atores políticos desejosos de manter Lula na prisão —, a maioria dos ministros do Supremo decidiu pela possibilidade de que um réu condenado em segunda instância seja preso, mesmo que ainda esteja em processo de recurso.

O debate sobre antecipação da execução da pena, porém, não diz respeito apenas ao caso de Lula. O Brasil possui uma população carcerária de mais de 812 mil presos, de maioria negra e pobre, segundo dados de julho do Banco de Monitoramento Nacional de Prisões, vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Deste total, 41,5% são presos provisórios, ou seja, sequer foram condenados. No início de outubro de 2019, o CNJ divulgou em nota que 4,9 mil presos poderiam ser beneficiados pela rejeição da prisão em segunda instância, ainda que 190 mil estejam sentenciados sem trânsito em julgado. No entanto, apesar de o Brasil ter a terceira maior população carcerária do mundo, com uma taxa de encarceramento que aumenta assustadoramente a cada ano e graves problemas de superlotação e infraestrutura precária, violações de direitos humanos, insuficiência de políticas de ressocialização, dentre outras falhas de naturezas diversas no sistema prisional, a discussão sobre a possível mudança jurídica tende a ignorar tais questões que englobam milhares e estar centrada na figura do ex-presidente Lula.

Utilizada como maior troféu da Operação Lava Jato e fonte do apoio que ela tem em parcelas da sociedade, a prisão de Lula em abril de 2018 passou a balizar muitas das discussões sobre a segunda instância no âmbito político e jurídico no Brasil desde então. Na sociedade civil, desde a prisão, em abril de 2018, o Movimento Lula Livre tem se mobilizado no país e no exterior pela liberdade do ex-presidente, denunciando a perseguição política a Lula e defendendo o trânsito em julgado, conforme garante a Constituição.

Após o resultado da votação do STF e da soltura de Lula no dia seguinte (08/11/2019), muitas pessoas nas redes sociais comemoraram também pela perspectiva de liberdade para o DJ Rennan da Penha. Rennan, um dos criadores do popular Baile da Gaiola no Rio de Janeiro, foi acusado de associação ao tráfico e absolvido em primeira instância por falta de provas, mas condenado e preso em segunda, no início de 2019, caso que, além de evidenciar a arbitrariedade e o racismo da Justiça brasileira, é parte das constantes tentativas de criminalização do funk no país.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e diversas outras associações de advogados também se posicionaram contra a prisão em segunda instância. No entanto, muitos atores políticos guiados pela postura radical anti-PT e anti-Lula, como senadores, deputados, promotores, juízes e militares, se manifestaram e exerceram pressão sobre o STF para que a votação final fosse em favor da prisão em segunda instância, já que o contrário poderia beneficiar Lula e mais 38 dos 103 condenados pela Lava Jato, assim como outros acusados que aguardam a condenação. Com o resultado e a soltura do ex-presidente, recebido com festa em Curitiba e, no dia 09 de novembro, carregado nos braços de uma multidão após discurso no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Moro disse que o Congresso pode alterar a Constituição para reverter a decisão do STF. Enquanto isso, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, Felipe Francischini (PSL), está correndo para aprovar uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com essa finalidade. No entanto, o trânsito em julgado faz parte dos direitos e garantias individuais, sendo cláusula pétrea.

O Supremo Tribunal decidiu defender o que está na Constituição, em votação apertada, evidenciando a fragilidade de uma democracia que sequer a respeita. O STF corrige assim a própria interpretação feita pela maioria de seus ministros em 2016, embalado agora também pelo escândalo exposto pelas reportagens da Vaza Jato, do site The Intercept Brasil, as quais explicitaram não só a parcialidade e ilegalidade em ações da operação que prendeu o ex-presidente Lula como um conjunto de práticas que abalaram ainda mais a imagem do Supremo Tribunal no período. Com o descontentamento de segmentos conservadores, neoliberais e partidos de direita, entretanto, o debate está longe de acabar. Foi empurrado de volta ao Congresso Nacional, à base de apoio da Lava Jato e do governo Bolsonaro, que têm mostrado pouco apreço tanto pela Constituição quanto pelas injustiças que atingem milhões de brasileiros.

Maria Helena de Pinho, estudante de Graduação em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista de Iniciação Científica/CNPq.

Terezinha Silva, professora do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).



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