O Brasil e o mundo já vinham experimentando os sintomas de uma grande crise política, social e humanitária. Devastação ecológica, enfraquecimento das democracias, ressurgimento da extrema direita, militarização, desemprego, reordenação da geopolítica mundial e críticas ao modelo da globalização neoliberal foram alguns dos aspectos mais evidentes. Não bastasse tudo isso, surge uma crise sanitária sem precedentes e jamais vivida em tal escala na história da humanidade do último século.
Esse estado precário em que já vivíamos acentua o sentimento de “fim do mundo” trazido por uma pandemia. E, com ele, a indagação: o que virá depois? Hipóteses pessimistas e otimistas surgem no horizonte.
Do lado pessimista, o grande temor é a porta aberta para vários tipos de autoritarismo e privação de liberdade. O fortalecimento dos estados, exigido pela crise, pode ocorrer dentro da normalidade constitucional, com governos recorrendo a mecanismos legais, pensados para momentos atípicos. Entretanto, tendências autoritárias e ditatoriais já encubadas nos governos de vários países encontram, na ameaça trazida pela Covid-19, a oportunidade para o avanço.
Esse foi o caso da Hungria, onde Victor Orbán, sob o pretexto da pandemia, obteve do parlamento húngaro, no dia 30 de março passado, a aprovação de um pacote de leis que lhe concedem todos os poderes, por tempo indeterminado. Este instrumento permite consolidar o controle do governo pelo primeiro-ministro. A partir de agora, torna-se possível a suspenção de eleições ou a prisão de pessoas que divulguem informações que o governo considerar incorretas — mais um passo para uma situação pioneira de ditadura na União Europeia.
Governos de outros países ensaiam também a aprovação de leis de controle, tanto passando por cima das instituições, quanto estabelecendo mecanismos de vigilância dos cidadãos, como ocorre em alguns países asiáticos. A ideia de que é admissível que as autoridades controlem os movimentos e as interações da população, mesmo que seja para evitar a propagação do vírus, pode ser muito perigosa e difícil de ser superada.
O governo brasileiro, que tem Orbán como aliado, não está imune a essa ameaça autoritária. Nosso “aprendiz de ditador” ensaia passos nesse sentido, há algum tempo, e um golpe explícito apenas ainda não se confirmou pela incompetência política de Bolsonaro, que — embora mantendo um índice confortável de apoio popular — está ficando cada vez mais isolado e sem poder no Planalto (ver análise Se o rei reina, quem governa?)
Um segundo cenário sombrio e triste, decorrente da pandemia, é a constatação de quem paga a conta mais alta do desastre sanitário. Embora circule como lugar comum a máxima de que epidemias desconhecem barreiras de raça, classe e nacionalidade, são também bastante evidentes as diferenças no seu enfrentamento – desde condições de saúde, alimentação e moradia até as possibilidades de prevenção e tratamento. Isto fica evidente quando observamos que, apesar de o vírus ter começado a se espalhar em classes mais altas, os índices de mortes são maiores entre os mais pobres. Conforme David Harvey*, no contexto da sociedade contemporânea, não há nada que seja um desastre plenamente natural. As condições de surgimento e expansão desse novo vírus não são externas aos modos de vida, de produção, circulação e distribuição de poder estabelecidos pela globalização neoliberal.
Em uma sociedade cada vez mais orwelliana, o pior que poderia acontecer, diante da crise sanitária e econômica que o mundo enfrenta, é também uma crise política, que faz com que as democracias se suicidem. No entanto, leituras mais alvissareiras também despontam em nosso horizonte. A falência de nosso modelo de vida não poderia ser a mola propulsora para o surgimento de novos projetos, em busca de uma sociedade mais justa?
* HARVEY, David. Política anticapitalista en tiempos de coronavirus. IN: AMADEO, Pablo (org.) Sopa de Wuhan. Editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), marzo 2020.
Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab
Chloé Leurquin, jornalista, doutoranda em Comunicação Social (UFMG) e pesquisadora do GRIS