Análise | Morte

Quem tem o direito de morar?

A repercussão do incêndio e queda do prédio ocupado por 400 famílias no Largo do Paissandu, em São Paulo, coloca sob os holofotes vidas vulneráveis, e questiona quem é responsável por dar e quem é digno de ter moradia.

Ricardo Oliveira, o “Tatuagem”. Foto: Instagram.

Ricardo Oliveira – conhecido como Tatuagem – morava há quatro anos na ocupação do prédio Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo. Trabalhava descarregando produtos chineses e frutas de caminhões, fazia R$ 50 ao dia. Divorciado da esposa, brigado com as filhas, vivia por si no 9º andar da ocupação, cuidando de plantas e dos seus dois animais de estimação: Fumaça e Faísca. Andava de patins, tomava albumina, fumava maconha – isso tudo de acordo com suas fotos postadas no Instagram, onde muitos e muitas, após sua morte, foram escrever comentários argumentando a favor ou contra a ideia de que Tatuagem era um criminoso e, assim, não deveria ser condecorado como herói.

O perfil foi traçado por diversos canais da mídia após a descoberta de que o morador da ocupação resgatou vizinhos e suas crianças antes de morrer, no desabamento do prédio em chamas – prédio em que viviam 400 famílias, em uma ocupação. Seus últimos minutos de vida, na tentativa de se salvar do fogo, foram registrados pelas câmeras. O resgate e o sacrifício da própria vida reservaram a esse homem comum a possibilidade de ter uma biografia; ter sua história de vida contada nos jornais o torna passível de luto. Sua morte aponta para o óbvio: seres humanos, com nome e história, moravam e viviam ali, em situação de vulnerabilidade – e se são seres humanos, eles não deveriam ter o direito de ter uma vida protegida?

A aparição de Tatuagem na mídia – que se justifica apenas por sua morte trágica e heroica, impossível de ser ignorada – mesmo trazendo comoção e sensibilidade aos olhos de quem a vê, também trouxe desconfiança e acusações. Uma foto de uma mala de dinheiro publicada no Instagram seria a prova de que o morador era, na verdade, um criminoso, um bandido. Consequentemente, segundo muitos, não deveríamos nos comover por sua morte.

Se o Estado deve prover moradia para aqueles a quem ele deve proteger, é preocupante observar a primeira justificativa do ex-prefeito de São Paulo, João Dória, ao se pronunciar pela primeira vez sobre a tragédia: “A solução é evitar as invasões, o prédio foi invadido, e parte dele por uma facção criminosa”. Se são invasores, são culpados pela própria tragédia. São responsáveis pela própria condição precária de vida, pela própria vulnerabilidade – e o governo não tem nada a ver com isso.

O acontecimento do Largo do Paissandu nos desperta a seguinte questão: quem são aqueles que são dignos de uma boa moradia? Quem são aqueles dignos de luto e comoção? O que uma vida precisa ter – e o que ela não pode ser – para que o Estado se responsabilize, a mídia relate e a população se entristeça? “O povo está com medo de ir para um albergue e ficar esquecido”, relata Maria, tia de Tatuagem. “Se a gente vai para lá, eles não vão ajudar mais. [….] A gente perdeu uma casa. A gente quer uma coisa para dormir, para ter nosso sossego”. Enquanto se debate se esses são de fato ocupantes ou invasores, esquece-se do imperativo de que essas – e outras vidas em situação precária – sofrem com a falta de um olhar atento, comovido, responsável.

Lucas Afonso Sepulveda
Doutorando em Comunicação Social pela UFMG e pesquisador do GrisLab



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