Análise | Especial Questões raciais

Temos vagas [mas só para brancos e magros]!

Um anúncio para cuidador de idosos em BH chamou a atenção por não admitir candidatos negros ou gordos. O fato virou caso de polícia pelo teor racista e gordofóbico. O acontecimento revela um mercado excludente, mas a repercussão aponta que a lógica preconceituosa no país passa por tensionamentos.

Somente brancos e magros estão aptos a cuidarem de idosos. Pelo menos, esta é a ideia contida em um anúncio de emprego, divulgado por uma psicóloga recrutadora a pedido da Home Angels Centro-Sul, na capital mineira.

O texto foi postado em um grupo de WhatsApp formado por profissionais da área. Reforçava a urgência da demanda, detalhava a remuneração, o tempo de experiência exigido e outros aspectos típicos de um anúncio dessa natureza. Mas havia um porém: negras e gordas não poderiam se candidatar.

O caso teve uma imensa repercussão negativa e uma cuidadora decidiu registrar um boletim de ocorrência por racismo e gordofobia. De fato, não há absolutamente outra leitura possível: trata-se de uma oferta genuinamente preconceituosa.

O acontecimento trouxe à tona uma gramática valorativa que hierarquiza trabalhadores menos pela capacidade profissional e mais pela cor da pele, peso, tipo de cabelo, em outras palavras, pela famigerada “boa aparência” – expressão hoje rara nos discursos oficiais de recrutadores, mas que implicitamente sobrevive.

Brasileiros que não vestem um manequim 38 são obrigados a conviver com recusas de trabalho, olhares e comentários embutidos em um tipo de preconceito praticado por 92% da população: a gordofobia. Mulheres obesas ganham menos e são contratadas para atuar mais em funções braçais do que na interação com o público.

Quanto aos negros, a desqualificação de sua força de trabalho e de seu valor enquanto sujeitos têm raízes no solo escravagista que originou a nação brasileira. Mesmo depois de oficialmente “livre”, em 1888, o negro permaneceu invisível no mercado de trabalho ou teve que se contentar com cargos e salários precários. Apesar de serem maioria no Brasil, o desemprego é maior entre pretos e pardos. Eles também recebem, em média, 74% a menos que os brancos. E a diferença salarial persiste independentemente do nível de escolaridade.

No Dia da Consciência Negra, é preciso ver como o acontecimento aqui analisado joga luz sobre uma sociedade ainda extremamente preconceituosa, que qualifica seres humanos por características físicas e oculta a própria historicidade que permeia tal qualificação. Dizer que gordura é sinal de desleixo ou que o negro é menos capaz que o branco é uma construção discursiva ancorada em temporalidades e espaços simbólicos próprios – e que podem ser desconstruídos.

No caso do racismo, essa temporalidade já se arrasta por mais de 500 anos no Brasil. Em pleno século XXI, o talento de pretos e pardos é interditado, sua voz é silenciada enquanto sua corporeidade fala por meio da exclusão. Porém, a própria repercussão negativa da oferta de vagas para cuidador de idosos em BH aponta para algumas fissuras neste panorama. Claro que ainda há muito para se caminhar. E nossa marcha deve ser rumo a um país no qual não se contratem pessoas por seus traços físicos, em que não seja necessário separar um dia do ano para ressaltar a importância de raças e em que análises como esta sequer precisem ser feitas. Eis o horizonte esperado.

Raquel Dornelas, doutoranda em Comunicação Social (UERJ)



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