A publicação do perfil “Bela, recatada e do lar” pela revista Veja, sobre Marcela Temer, esposa do presidente interino, abriu espaço para o questionamento dos lugares e representações da mulher na sociedade brasileira.
Bela, recatada e do lar. Foi assim que uma repórter da Veja descreveu Marcela Temer, esposa do presidente interino Michel Temer, em um perfil publicado pela revista no dia 18 de abril.
No texto, a repórter faz observações curiosas sobre a trajetória e o estilo de vida de Marcela e de sua família, composta pelo marido e seu filho de 7 anos, “Michelzinho”. Ali, ficamos sabendo dos detalhes do primeiro encontro de Marcela e Temer (que aconteceu quando ela tinha 19 anos e ele 62), de como ela prefere que um cabeleireiro famoso arrume seus cabelos, e que tipo de roupas ela gosta – “vestidos até os joelhos e cores claras”. Ressalta-se, também, que ela “chama a atenção pela beleza”, mas sempre foi “recatada”, conforme relata a irmã. Apesar de ser sobre ela, o perfil não tem sequer uma frase de Marcela sobre si mesma ou sua vida, mas traz um poema sensual escrito pelo marido e dedicado a ela. O parágrafo que encerra o texto diz: “Michel Temer é um homem de sorte”.
A publicação desse texto, cuja recepção teria sido morna e até positiva em tempos passados, se tornou um acontecimento midiático tão grande que repercutiu em vários grandes veículos nacionais e desencadeou um turbilhão de (re)ações críticas. Nas redes sociais, “Bela, recatada e do lar” virou uma hashtag, com milhares de mulheres postando fotos que brincavam e apontavam o peso misógino e machista do texto. Nos dias que se seguiram, este coro foi engrossado por diversas mulheres famosas – de deputadas federais a atrizes da Rede Globo -, dando visibilidade a falas e figuras que contribuem para o fortalecimento da luta pela equidade de direitos entre homens e mulheres.
Como sabemos, todo acontecimento tem seu poder de afetação, sobretudo quando levamos em conta o contexto que o abriga. No contexto contemporâneo, da chamada “Primavera das Mulheres”, em que o engajamento virtual em hashtags que chamam a atenção para comportamentos e discursos sexistas é poderoso e massivo, um texto que tenta resgatar e impor lugares e valores tradicionais – ainda vigentes e em processo de ressignificação – à mulher, como o recato, a subordinação, a beleza contemplativa e a servidão doméstica, só poderia ser combatido e problematizado em seu próprio desserviço por parcela significativa da sociedade. Sobretudo em um momento em que todas assistimos à ascensão e queda da primeira presidenta brasileira (cuja eleição legítima pode ser considerada um grande avanço na representatividade feminina na política) pelas mãos de um Congresso e um Senado formados majoritariamente por homens, que portam bandeiras conservadoras e vão, pouco a pouco, anulando conquistas de direitos básicos das mulheres, como por exemplo, o acesso livre à “pílula do dia seguinte”.
Muito se falou e se fez após a publicação de “Bela, recatada e do lar”: hashtags foram criadas, fotos viralizaram, feministas e famosas ganharam espaço de fala em veículos importantes; deputadas se insubordinaram e tomaram o assento do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha; a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa discutiu novamente a legalização do aborto; Dilma foi afastada da presidência e Marcela Temer virou, de fato, a primeira dama. Entretanto, pouco parece ter sido escutado até o momento: nos ministérios do governo Temer, pela primeira vez desde 1964, não há sequer uma mulher, e o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos foi extinto. Com isso, vemos que, apesar de todo o barulho, o lugar da mulher ainda está em disputa para que seja onde ela quiser.
Mayra Bernardes
Bacharel em Comunicação Social pela UFMG
Pesquisadora do Gris