Analisar o caso do médico que debochou do modo simples de expressão de um paciente da rede pública, de sua “peleumonia” nas redes sociais, implica falar também do elitismo da classe médica e da ameaça à sua condição privilegiada. Esses aspectos estão imbricados nas agressões racistas e misóginas feitas a uma médica negra por parte de um colega de profissão, desencadeadas por um texto em que ela se coloca diante de seus pacientes em pé de igualdade.
Ao final de julho as redes sociais ficaram agitadas com a postagem de Facebook feita por um médico da rede pública de saúde em Serra Negra-SP: Guilherme Capel fotografou um receituário médico após escrever “Não existe peleumonia e nem raôxis”. Ele e duas enfermeiras teceram comentários vexatórios na rede social, aludindo à forma de expressão de pacientes de origem humilde, mais notadamente do mecânico José Mauro de Oliveira Lima, que havia sido atendido poucos minutos antes da postagem. Logo o caso ganhou repercussão em meios alternativos e hegemônicos, resultando imediatamente na demissão dos três funcionários e em uma sindicância aberta pelo Conselho Regional de Medicina.
Um acontecimento é constituído por disputas de sentidos e por reverberações que alteram seu próprio fluxo, é fruto de um processo complexo que pode ser observado sob vários ângulos. Se, inicialmente, o jovem médico se recusou a dar entrevistas, justificou que não estava trabalhando quando fez a foto, classificou a humilhação digital como “brincadeira” e até ameaçou processar quem veiculou a foto de sua postagem em matérias jornalísticas, não demorou para que alterasse sua postura, percebendo que o que chamou de “brincadeira” lhe custou caro e que sua imagem desmoronava cada vez mais. Guilherme Capel logo apagou a foto do prontuário, pediu desculpas públicas, visitou o paciente ofendido (e posou com ele para uma foto que seria postada no Facebook) e se dispôs a atender voluntariamente no hospital do qual foi demitido. Não se sabe se essas ações foram fruto de uma consultoria de imagem, mas vale destacar que a humilhação ao mecânico continuou sendo classificada como “brincadeira” e que o médico tentou limitar sua imagem ao “médico que faz trabalho voluntário”, recusando qualquer vínculo com seus atos preconceituosos (jamais nomeados como tal).
A reverberação deste acontecimento também fez emergir falas indignadas de pessoas mais humildes nas redes, que mostraram o reconhecimento de problemas e desrespeitos em suas próprias palavras. Elas comentaram sobre a formação do caráter não depender de uma faculdade, sobre médicos que se julgam superiores por causa do diploma, sobre a ausência de noções de ética e cidadania na classe médica e sobre o fato de ninguém falar a norma culta da língua o tempo todo. Um desdobramento importante foi a postagem da médica Júlia Rocha intitulada “Existe Peleumonia”, que retratou situações recorrentes em consultórios populares, mas que também foi recebida com comentários violentos, racistas e sexistas, liderados pelo médico Milton Pires, servidor da Prefeitura de Porto Alegre-RS, que ainda está sendo cobrada por internautas e ativistas a se posicionar diante do caso.
Quando um paciente recorre a um profissional de saúde, está em uma condição de fragilidade, não espera virar piada. Tanto o deboche por parte de Guilherme Capel quanto as agressões feitas a Júlia Rocha revelam o imenso abismo que existe dentro dos consultórios brasileiros e que vai muito além do acesso à educação formal: passa por estruturas de classe, por exclusões raciais e de gênero, atravessa um segmento profissional ainda elitizado. Este acontecimento não é o primeiro a denunciar médicos, mas incomoda e faz barulho porque os questiona e os destitui de seu lugar “intocável”, blindado por estruturas que compõem a sociedade brasileira e que justificam um corporativismo ainda predominante. Mostrar que o médico pode errar, oprimir, ser preconceituoso ou ser tão humano quanto qualquer paciente parece ser ainda um tabu.
Tamires Ferreira Coêlho
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social-UFMG
Pesquisadora do Gris
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de agosto, definido em reunião do Grislab.