Análise | Diário da Quarentena Música, arte e moda Questões raciais

Beyoncé, imaginação e construção de subjetividades: por que o idílico negro incomoda tanto?

Para além das polêmicas envolvendo “cancelamentos”, abordamos “Black is King” como uma roupagem proposital da África idílica, que busca mostrar os valores positivos do continente milenar e divulgar o “Black is Beautiful”. Resta à branquitude se questionar o porquê de a imaginação negra incomodar tanto.

Imagem: Instagram @zerinaakers

Beyoncé, grande estrela atual da música Pop estadunidense, lançou, no fim do mês de julho, o seu mais novo álbum visual, “Black is King”: uma releitura da animação “Rei Leão”, lançada pela Disney na década de 90 e inspirada em Shakespeare; uma espécie de Hamlet, só que com leões animados e para crianças. A nova roupagem proposta pela artista é completamente tomada por referenciais culturais e artistas africanos. Através desse álbum visual, Beyoncé se propõe a apresentar uma África idílica, o retorno à Mama África, a mostrar os valores positivos do continente milenar e divulgar que “Black is Beautiful”. Ela quer transformar a percepção do que é ser preto.

Não quero entrar aqui em polêmicas envolvendo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, intelectual de grande renome e que construiu sua bibliografia em pesquisas sobre o período escravagista no Brasil. Para além das discussões vazias sobre o “cancelamento” de pessoas brancas, que nunca chega verdadeiramente a acontecer, quero aqui levantar a questão que considero a mais pertinente: por que é proibido a pessoas pretas imaginar um passado/futuro melhor?

A todo momento, no Brasil e no mundo, as pessoas negras diaspóricas são bombardeadas por imagens de racismo e segregação. Sabemos da importância da denúncia dessas condutas e percebemos a mobilização social que a pauta racial vem gerando, através do “Black Live Matters” e outros movimentos que tomam as ruas e as redes sociais para expor e discutir as feridas profundas do racismo. Só que, para além da existência física, existimos enquanto sujeitos. E essas “imagens de controle”, dais quais Patrícia Hill Collins fala, são constantemente replicadas pela mídia, colaborando na consolidação dessa eterna ferida racial que a violência racista nunca permitiu fechar. Precisamos de utopias.

Nunca ouvi ninguém reclamando da retratação midiática das cruzadas, das histórias do Rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda. Dificilmente se ouvem reclamações acerca da adaptação dos contos de fadas por não serem “historicamente acurados”, e eu poderia continuar eternamente com os exemplos de retratações históricas idílicas da cultura branca europeia, que sequer se aproximam da nossa. Mas uma mulher negra não pode imaginar um passado de reis e rainhas africanos, vestindo oncinha e ouro, porque isso fere o pacto narcísico da branquitude.

Nas sociedades iorubás, é pelo mito que se alcança o passado, se interpreta o presente e se prediz o futuro, muito antes de Nietzsche escrever sobre seu eterno retorno. A sociedade ocidental está presa no “White Cube” que Grada Kilomba retrata tão bem em suas Desobediências Poéticas. Beyoncé não foi a primeira artista a fazer isso: Sandra de Sá, Elza Soares, Iza, Gilberto Gil, DJonga, Racionais MC’s, Nina Simone e muitos outros artistas cantam, dançam e retratam nosso passado glorioso. Nós tomamos a caneta e vamos continuar a escrever.

Beyoncé pede licença e usa as vestes de Yemanjá, Osún, Hathor, Virgem Maria e Nossa Senhora para nos lembrar que uma mãe nunca se esquece de seus filhos.

Nealla Valentim Machado, Professora Departamento de Comunicação Social da UFMT, doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT, jornalista



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