Ela chegou lá: a aposentadoria de Gisele Bündchen
No mês passado, a mídia brasileira anunciou a “aposentadoria” de Gisele Bündchen das passarelas da moda. Quatro dias antes do esperado último desfile, a modelo declarou à Folha: “não é uma aposentadoria, eu não descarto desfilar.” O acontecimento, comparado pelo Jornal Nacional com o vazio deixado por Pelé ao parar de jogar futebol, revelou modos de funcionamento da cultura das celebridades, do marketing e da publicidade. O evento mostrou que Gisele Bündchen personifica a trajetória feminina bem-sucedida num contexto de pós-feminismo: autossuficiente, empresária forte, enfim, mulher poderosa.
Nos anos 1980, os desfiles de moda se transformaram. Não se caracterizando mais pela exibição comercial de uma coleção de roupas, o desfile deixou de ser realizado para os compradores de moda e se tornou “um meio de falar de si nas mídias, comunicar o universo de um criador, construir uma imagem espetacular da grife, que mistura marketing e arte, divertimento e quadro vivo” (1).
Mais que qualquer outra modelo, Gisele Bündchen soube aproveitar a transformação. Sua trajetória no universo da moda, iniciada em 1994 na Elite Models, deslanchou em 1999 (2). Naquele ano, ao contrário de ter feito um importante desfile ou um ensaio com um fotógrafo reconhecido, a realização de Gisele Bündchen foi no campo da publicidade, assinando um contrato de divulgação da marca Victoria Secret’s. Na época, declarou: “eu pensei, gente, mas eu preciso fazer isso para me dar uma segurança financeira que o fashion não me dá” (3). De lá para cá, Gisele Bündchen acumulou US$ 451 milhões, estimativa da revista Forbes; US$ 47 milhões teria sido o valor faturado dos últimos doze meses.
Quatro minutos foi o tempo total de duração do desfile da Colcci, que marcou o encerramento da atuação da modelo em semanas de moda. Gisele Bündchen entrou na passarela duas vezes, intervenções que duraram exatos oitenta segundos – na última, a modelo levou as mãos ao rosto e foi às lágrimas. No encerramento, as igualmente veteranas Ana Cláudia Michels, Carol Ribeiro, Fernanda Tavares, Luciana Curtis e Carolina Bittencourt entraram na passarela junto com a homenageada.
A desproporção dos lucros da modelo e do tempo de trabalho no desfile da Colcci é justificada: toda marca, ao associar-se com o nome de Gisele Bündchen, tem expressiva elevação de faturamento. Paga-se tão bem a Gisele que o economista Fred Fuld reuniu os ganhos anuais das marcas que contratam Gisele Bündchen. O “índice Gisele Bündchen”, segundo ele, teve alta de 105%, desde 2007. Para se ter uma ideia, a bolsa Dow Jones faturou 36,9% no mesmo período (4).
Gisele Bündchen, autocentrada, praticante de ioga e meditação, mãe e esposa, gestora de si e da sua carreira, personifica o modo como a força e o poder de mulheres são construídos pela mídia contemporânea. Em contrato publicitário recente, com a marca de materiais esportivos Under Armour, Gisele Bündchen gravou cenas em que treina boxe. A vice-presidente de criação da campanha declarou: “Para termos as imagens necessárias à campanha, que incluíam exercícios físicos pesados, ela suou a camisa por muitas horas. Não reclamou de nada, nem mesmo do calor que fazia em Nova York” (5).
Segundo a pesquisadora inglesa Angela McRobbie, a felicidade e a realização femininas raramente aparecem na mídia como projetos políticos, que caracterizaram as reivindicações feministas em diferentes momentos do século XX (6). Ao contrário da tese antifeminista do backlash, trazida por Susan Faludi, nos anos 1980, McRobbie mostra que o feminismo hoje é levado em conta como movimento finalizado. As aspirações femininas podem ser plenamente alcançadas por mulheres através da capacidade absoluta e individual de definir a condução de uma vida bem-sucedida. Mulheres vencedoras não necessitam mais da politização das desigualdades de gênero. Elas precisam de gestão, força de vontade, autoestima, dedicação, foco, busca por resultados e controle de tempo.
A “aposentadoria” de Gisele Bündchen leva a crer que “ela venceu” e incentiva que mulheres comuns, ainda que não venham a se tornar über mulheres, “cheguem lá” através do diligente trabalho sobre si.
Lígia Lana
Doutora em Comunicação Social (UFMG)
Professora da Escola de Comunicação da UFRJ e da Escola Superior de Propaganda e Marketing, ESPM-Rio.
Referências
1. Lipovetsky, Gilles; Serroy, Jean. A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p.293.
2. Quando a mídia passou a denominá-la übermodel…
3. Lana, Lígia. Gisele Bündchen e Luciana Gimenez: estudo comparativo da trajetória de duas celebridades brasileiras. Saarbrücken: Novas Edições Acadêmicas, 2014. p.145.
4. Abdallah, Ariane; Grisoto, Raquel. Como Gisele Bündchen construiu sua fortuna e se tornou a modelo mais bem paga do mundo. Época Negócios, 29 jan. 2015. Disponível em: http://epocanegocios.globo.com/Informacao/Visao/noticia/2015/01/como-gisele-bundchen-construiu-sua-fortuna-e-se-tornou-modelo-no-mundo-dos-negocios.html
5. Idem.
6. MCROBBIE, Angela. Post-Feminism and Popular Culture. Feminist Media Studies, v. 4, n. 3, p. 255–264, 2004.
Imagem 1: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/04/1614994-gisele-bundchen-diz-que-sinais-fisicos-a-fizeram-abandonar-as-passarelas.shtml
Imagem 2: http://www.dailymail.co.uk/femail/article-2744146/NOT-just-pretty-face-A-kickboxing-Gisele-Bundchen-demonstrates-impressive-athletic-prowess-new-Under-Armour-ad.html