Há mudança no tratamento midiático quando um crime semelhante ocorre com representantes de distintos estratos da sociedade? Parece que sim. Tamires Coêlho discute como dois acontecimentos similares tiveram um tratamento diferenciado pela mídia: as mortes de João Hélio e Cláudia da Silva, ambos arrastados por veículos pelas ruas do Rio de Janeiro.
Quando uma criança foi arrastada por um carro roubado há alguns anos, houve comoção nacional. João Hélio Fernandes faria 14 anos neste mês se sua vida não tivesse sido interrompida em fevereiro de 2007. Os assaltantes que arrastaram o menino foram procurados e perseguidos, pela polícia e pela mídia, até sua condenação. Sete anos depois, a mídia repercute de maneira diferente um acontecimento similar: Cláudia da Silva Ferreira, de 38 anos, foi também arrastada dependurada a um veículo e morreu no dia 16 de março de 2014.
A cidade é a mesma – Rio de Janeiro –, mas há diferenças: em vez de assaltantes, policiais; em vez de carro roubado, viatura policial; em vez de uma criança branca de classe média, uma auxiliar de limpeza, pobre e negra, que morava no Morro da Congonha; em vez de ganhar todas as manchetes de jornais e noticiários nacionais, é apenas mais uma morte dentre tantas outras.
As mesmas autoridades que estiveram no enterro de João Hélio em 2007 sequer contataram a família de Cláudia, de acordo com O Globo. O secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, que já era secretário na ocasião da morte de João Hélio e que compareceu ao sepultamento da criança acompanhado de um coronel da Polícia Militar, limitou-se a enviar uma nota à imprensa repudiando a conduta dos policiais no caso de Cláudia.
Repercussão Midiática
A diferença entre os discursos produzidos sobre os dois casos na mídia impressiona. A morte de Cláudia não tem a comoção da morte de João Hélio, não há o sentimento de indignação nos textos (explícito ou não). Se não estivesse circulando um vídeo amador que registra o momento em que o corpo de Cláudia Ferreira foi arrastado pelas ruas cariocas, sequer seriam mencionados o crime e a vítima, porque seria somente um número a mais nas estatísticas de mortes durante “tiroteios” nos morros do Rio.
Cláudia teve seu nome apagado midiaticamente e virou “a arrastada” – um tratamento cruel e desumano com a vítima e com a família que a perdeu de maneira trágica. A denominação de “arrastada” além de fria, mostra a banalização de uma morte similar a muitas que acontecem todos os dias nos morros cariocas, envolvendo a polícia. Os jornalistas parecem não assimilar uma morte, a perda de uma família, mas apenas mais uma informação rotineira e repetitiva, que poderia nem ser tão explorada. Foi possível acompanhar no Globo.com a multiplicação de termos como “filha de arrastada”, “mulher arrastada”, “enterro de arrastada”, evidenciando que a vítima não é reconhecida à mesma medida de João Hélio, anulando-se aí qualquer direito à cidadania. Em vez de tratar do “Caso Cláudia Ferreira” ou do “Caso Cláudia” (como o “Caso João Hélio”), a mídia passou a tratar do “Caso da Arrastada”, como se fosse referente a um ser qualquer e não a um ser humano que tinha nome, família, emprego, filhos, família e vida social.
Em tese, “um jornalista deve fazer três coisas: produzir informação da maneira mais honesta possível; fazer perguntas para que possa compreender a complexidade do mundo; e ainda elaborar a crítica” (WOLTON, 2012, p.207). Na prática, o que percebemos no caso de Cláudia e em inúmeros outros é que a crítica ainda está muito distante do cotidiano jornalístico. A polícia não é uma instituição criticada pelos meios, sobretudo quanto a ocupações e operações nas periferias. Dependendo do meio, a editoria de polícia pode ser uma assessoria, limitando-se a veicular dados oficiais.
É interessante perceber que civis suspeitos de um crime podem ser condenados previamente pela mídia, mas não os fardados de policiais. Há sete anos, não vimos nenhuma menção da mídia quanto à possibilidade de João Hélio ter sido arrastado sem intenção. Se eles eram assaltantes, era intencional, pois eram criminosos sem alma. No caso de Cláudia, segundo Globo.com, a vítima foi “socorrida” pelos policiais após ser “baleada em um tiroteio”; “três policiais que socorreram vítima de tiroteio”.
Questionamos por que o tratamento midiático é tão diferente. Por que não questionar a PM sobre policiais condenados por homicídio circularem livremente e participarem de operações? Por que não questionar uma polícia mal preparada, que faz disparos aleatórios e que nunca é culpada durante os tiroteios? Por que não questionar uma polícia que faz “prestação de socorro” totalmente inadequada, desautorizada e negligente? Por que condenar por antecipação os civis (criminosos ou não) e proteger a polícia? Por que o caso de Cláudia pode ter sido um acidente e o de João Hélio não? Se os policiais estão no Morro para proteger a população, por que o site Uol mostra a imagem de um policial apontando uma arma em direção às pessoas que protestavam revoltadas contra a morte de Cláudia? Se os jornalistas tiverem medo de questionar a polícia, não existe democracia e não haverá cobrança pela punição de policiais que já saíram impunes de outros crimes.
Em vez de uma cobertura exaustiva – como no caso de João Hélio –, observamos poucas e mal localizadas matérias sobre o caso de Cláudia nos sites e portais. A vida de uma mulher negra, mãe de oito crianças e trabalhadora é menos importante que a de uma criança branca de classe média? Para a mídia, infelizmente, sim. A história de Cláudia “vende” menos.
Referências
CARVALHO, C. A.Visibilidades mediadas nas narrativas jornalísticas: a cobertura da Aids pela Folha de S. Paulo de 1983 a 1987. São Paulo: Annablume, 2009.
WOLTON, D. É preciso diminuir a velocidade da informação. Entrevistadores: C. A. Zanotti; A. C. T. Ribeiro. In: Revista Comunicação, Mídia e Consumo, ano 9, v.9, n.25. São Paulo: ESPM, 2012.
Tamires Coêlho
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG
O texto de Tamires nos aponta duas dimensões que remetem aos modos de invisibilização da desigualdade no Brasil. A primeira dimensão se relaciona ao que Jessé Souza chama de desqualificação da ralé. Para ele, “Gentinha” ou “ralé” são adjetivos para caracterizar indivíduos que seja no meio rural do Piauí ou de Minas Gerais, ou no meio urbano de São Paulo ou Recife, são produzidas e reproduzidas como meros corpos, sem qualquer possibilidade de atuação política. A reflexão apresentada por Jessé Souza nos fornece um quadro bastante interessante a respeito dos esquemas avaliativos que mantemos implicitamente organizados para atribuir valor aos indivíduos e grupos sociais.
A segunda dimensão diz respeito ao fato de que de modo geral, a “ralé” tem sua fala excluída do espaço de circulação de pontos de vista e argumentos representado pela mídia. Isso acontece nos textos midiáticos, por exemplo, quando o texto não se preocupa em trazer as falas dos interessados; quando a ralé raramente (ou nunca) aparece como sujeitos aos entrevistados ‘institucionais’ (revelando que não o vêem como interlocutor); quando há sinais de que esses entrevistados acreditam que prestam contas à “ralé”, tratando-a como objeto de um debate ou como mera espectadora do processo decisório; e quando integrantes da “ralé” são convidados a falar, mas percebe-se que raramente é o conteúdo de sua fala que interessa, e sim a possibilidade de esta ilustrar um ponto de vista ou transmitir uma ‘lição’, geralmente ligada à superação de dificuldades pelo mérito individual.
Essa condição social e midiática subalterna se agrava ainda mais quando relacionamos gênero, cidadania, local de moradia e etnia.
Ângela Marques
Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
e pesquisadora do Gris/UFMG