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Entre DES-OCUPAR e DEZ-OCUPAÇÕES: o olhar para a saúde mental e a hipermedicalização

Em se tratando do campo psíquico-emocional, o limiar entre constatar uma patologia ou um sofrimento corriqueiro é bastante tênue. Mascarar lugares internos dolorosos parece seguro e confortável, por isso a indústria farmacêutica trabalha a todo vapor nesse sentido. Mas até que ponto eu aceito (e consigo) abrir mão de um imediatismo sintomático para tentar me compreender um pouco mais?

Foto: Jakayla Toney / via Unsplash

Vocês já tiveram a oportunidade de ler um código de classificação de doenças mentais ou algum livro de psicopatologia? Levante a mão quem se identificou com pelo menos uma ou com boa parte das doenças ali registradas e ficou com uma pulga atrás da orelha.

Já não é de hoje que vivemos uma era em que o imediatismo nos invade e se torna a nossa bandeira. Em diálogos do cotidiano, é comum se escutar: “Oi como está?”; “Bem, e você?”; “Na correria!”

Admitimos ter múltiplas tarefas em um curto espaço de tempo. Nos acostumamos com a ideia da velocidade das notícias que chegam e se vão em um piscar de olhos. Ao percorrer as redes sociais, conseguimos em um looping de segundos ir da gargalhada por algo inusitado até a sensação de um nó na garganta ou olhos marejados por aquela notícia dolorosa de ver. E após nos desconectarmos daqueles instantes dedicados à atualização do dia, voltamos aos afazeres, com a cabeça incrivelmente cheia de quadradinhos vazios e o coração fortemente acelerado para “dar conta das coisas”.

Não é de se espantar que a tal “correria” nos causa indícios de ansiedade, angústia e até depressão. São palavras que se tornaram coringas na contemporaneidade e carregam uma variação de intensidade, cuja escala vai de um até o infinito. Por outro lado, está a arrojada psiquiatria, que num casamento perfeito com a indústria farmacêutica, reatualiza as formas de compreender os efeitos do imediatismo, uma vez que produzem sofrimentos diante da incapacidade de suportar a frustração momentânea. E como resultante, fornecem receituários de ansiolíticos, antidepressivos, estimulantes e estabilizadores do humor. Todos eles, psicofármacos recordes de vendas na linha de medicamentos, encarados como meio de aliviar aquilo que cada vez mais é aprendido como insuportável: o peso de voltar-se para si mesmo.

O culto à efemeridade nos afasta cada vez mais de nós mesmos, já não há mais espaço para a normalidade e nem tempo para desocupação. Percebe-se a fuga pelo DES-OCUPAR e a ânsia e o desejo por DEZ-OCUPAÇÕES (no mínimo!). Qualquer resquício de tempo livre transforma-se em um grande fantasma interno, por isso subjaz a demanda inconsciente por produzir sintoma, que desemboca na elipse do adoecer – diagnosticar – prescrever – vender – medicar – aliviar – tamponar.

Nesse sentido, algumas indagações emergem: Qual o limiar entre suportar e sentir insuportável a dor de um sofrimento? Até que ponto produzem-se doenças para que haja espaços à produção de medicamentos?

Em se tratando do campo psíquico-emocional, o limiar entre constatar uma patologia ou um sofrimento corriqueiro é bastante tênue. Muitas vezes a própria pessoa não consegue identificar em si mesmo estes patamares, ao mesmo tempo em que muitos rótulos lhe são ofertados. Talvez estejamos precisando de um tempo para olharmos para nós mesmos, nos conhecer um pouco mais profundamente, conviver com as nossas imperfeições e destemperanças.

A pandemia do Covid-19 chegou como uma enxurrada para todos nós, não houve tempo hábil para se preparar para o inesperado, cada pessoa começou a enfrentar como foi possível. No entanto, defronte a essa realidade distópica, há uma imposição externa, como um prenúncio de que algo precisa parar, o freio precisa ser acionado. E por que não escutar o que está sendo posto à prova?

Não são todas as pessoas que têm o privilégio de ficar reclusas em casa para se prevenir, impedir a circulação do vírus e aguardar até que tudo cesse. Porém, é justamente quem cumpre o isolamento social que pode contribuir efetivamente para minimizar a propagação da doença. E por que não aproveitar esse “break” para também começar, além de rasgar aquela pilha de papéis, brincar mais com as crianças, fazer aquele curso interessante, por que não voltar um pouco mais para si e tentar silenciar o externo para ouvir o que vem de dentro?

Mascarar lugares dolorosos dentro da gente pode até parecer seguro e confortável de antemão, e é por isso que a indústria farmacêutica trabalha a todo vapor de modo que baste uns comprimidos ou gotas por dia para que a “paz” volte a se restabelecer. Mas até onde nos levarão essas fugas que criamos de nós mesmos?

Não é a intenção aqui invalidar a utilização de psicotrópicos ou questionar a sua função, até porque há muitos casos em que a necessidade se faz como complementar ao tratamento. Mas a questão é mais profunda e merece reflexões e ressignificações: até que ponto eu aceito (e consigo) abrir mão de um imediatismo sintomático para tentar me compreender um pouco mais e, quem sabe, conseguir ressignificar essa dor a partir de um encontro inédito e inadiável comigo?

Ana Luísa Coelho Moreira, psicóloga e doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília



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