Análise | Gênero e sexualidade Questões raciais

Já fomos sãos? Igualdade, justiça e loucura

Os assassinatos de Marielle Franco e Matheusa Passarelli evidenciam, pela ausência, valores como igualdade e justiça. A racionalidade moderna, que deveria garantir tais princípios, cria uma linha de divisão e exclusão daqueles que não se enquadram no padrão. Para esses, o tratamento justo ainda é objeto de luta política. O que nos obriga a pensar na perversidade da racionalidade que mata.

Arte: Ribs

Dois meses se passaram desde que Marielle Franco e Anderson Gomes foram brutalmente assassinados no Rio de Janeiro. Este acontecimento suscitou demonstrações públicas de luto por todo o Brasil, bem como manifestações políticas ligadas às causas que a vereadora defendia, principalmente a luta contra o genocídio do povo negro e pobre.

O assassinato de Marielle e Anderson colocou em evidência valores constitutivos do que chamamos de democracia atualmente, como a igualdade e a justiça. No entanto, esses valores são acionados justamente por serem percebidos como ausentes nesse quadro. Para muitos – e principalmente para os que compartilham das lutas encampadas pela vereadora carioca – sua execução foi ordenada porque seu corpo feminino, bissexual e negro não gozava das mesmas condições de existência na esfera pública. A vida de Marielle não foi assegurada como são asseguradas outras, masculinas, heterossexuais e brancas. A igualdade e a justiça, que deveriam ser premissas para a experiência humana, se tornam fins a serem conquistados.

Os mesmos valores (ou a ausência deles) ficam evidentes quando olhamos para o assassinato da estudante não-binária de artes da UERJ e militante LGBT, Matheusa Passarelli. Também pela ausência de igualdade e justiça, Matheusa teria sido executada por uma facção criminosa no Morro do 18. Segundo testemunhas, ela estaria andando nua e confusa pelas ruas do bairro, quando foi encontrada e julgada pelo tráfico. A Polícia ainda não encontrou seu corpo, mas acredita que ele tenha sido incinerado pelos assassinos. Assim como Marielle, Matheusa existia em um corpo que fica à margem das redes de proteção que apenas a igualdade e a justiça garantem. O acontecimento de sua morte suscita, portanto, a conversão desses princípios em fins.

Algumas teóricas feministas apontam a racionalidade como fonte de exclusão no contexto contemporâneo. Assim como explica Margaret A. McLaren:

“O ideal de racionalidade serve de fundamento para a igualdade porque os seres humanos são pensados como iguais e merecedores de respeito enquanto forem racionais.” (2016, p. 35, grifo nosso)

A ideia iluminista do “homem racional”, portanto, exclui todos aqueles que não se encaixariam nesses moldes: os loucos, sendo eles uma ampla categoria de corpos e experiências marginalizadas da esfera pública.

Historicamente, as características que marcam os corpos de Marielle e Matheusa foram enquadradas como desviantes da norma racional. O negro considerado como selvagem, a mulher como histérica, a afetividade homossexual como perversa. Neste quadro, a racionalidade, que serviu como base do pensamento Iluminista, visando aparentemente democracia, igualdade e justiça, acaba se transformando em uma concorrente dos valores que ela mesma gerou, minando a universalidade dos direitos humanos.

Ficam as perguntas: estaríamos nós ficando loucos? Já fomos “sãos”? Em um mundo doente, o que significa estar louco/são?

Maria Lúcia de Almeida Afonso
Mestranda em Comunicação Social pela UFMG e pesquisadora do GRIS

Referências

McLAREN, Margaret A. Foucault, Feminismo e Subjetividade. São Paulo: Intermeios, 2016 (Coleção Entregêneros).



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