Análise | Morte Música, arte e moda

Morte de João Gilberto: marco estético e político brasileiro

Morte do cantor e compositor deixa legado estético expansivo e solar em um país mergulhado em momento obscurantista.

“Uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”. Assim comentou, porque solicitado numa coletiva, o atual presidente da República do Brasil sobre a morte do cantor e compositor João Gilberto, ocorrida mês passado a 6 de julho. No atual momento histórico brasileiro, em que meio ambiente, ciência, cultura e arte estão sendo colocadas em margem obscurantista, não surpreende o pouco caso governamental com um dos nomes que mais promoveu o país mundo afora através de seu talento artístico. A morte do artista foi lamentada em vários países e instituições, além de um sem número de artistas nacionais e internacionais. 

Dentre eles, o cantor e compositor Caetano Veloso assim se manifestou no Facebook: “João Gilberto foi o maior artista com que minha alma entrou em contato. Antes de completar 18 anos, aprendi com ele tudo sobre o que eu já conhecia e como conhecer tudo o que estivesse por surgir. Com sua voz e seu violão, ele refez a função da fala e a história do instrumento. Pôs em perspectiva todos os livros que eu já tinha lido, todos os poemas, todos os quadros, todos os filmes que eu já tinha visto. Não apenas todas as canções que ouvi. E foi com essa lente, esse filtro, esse sistema sonoro que eu passei a ler, ver e ouvir. Aos 88 anos, com aspecto de quem não viveria mais muito tempo, João morrer é acontecimento assustador. (…) O Hino Nacional não seria o mesmo. O mundo não existiria. Sobretudo não existiria para o Brasil. Que era uma região ensimesmada e descrente da vida real fora de suas fronteiras. João furou a casca. (…) A música não seria música sem a teimosia de João. Ele foi uma iluminação mística (…)”

Eu próprio recebi a notícia da morte de João no estado natal do cantor e na cidade de Cachoeira (BA) vizinha à cidade natal de Veloso, Santo Amaro. Na véspera, estávamos ali em um congresso sobre música e comunicação e o professor Armando Castro, de Santo Amaro, apresentou trabalho sobre o pouco conhecido compositor baiano  Alcyvando Luz, o qual, em parceria com Carlos Coqueijo compôs a canção “É preciso perdoar”, nona faixa do álbum João Gilberto de 1973.  Durante a exposição, Castro falou sobre como João Gilberto, em visita a Alcyvando, que lhe apresentou a música, pediu que o mesmo a tocasse ao piano  não uma, duas, três vezes, mas ao longo de… três horas, ficando João deitado sob o instrumento de Alcyvando durante o período de execução. Tal episódio entra para a conta de outras tantas ocasiões em que o músico demonstrava, a um só tempo, seu ouvido absoluto e genialidade com a excentricidade e a teimosia perfeccionista – esticados da escuta para a voz e ao toque do violão.

João Gilberto se vai no mesmo ano em que o álbum de estreia que marcou essa sua nova estética da canção popular – Chega de Saudade – completa 60 anos. Junto com ele, o zeitgeist de um país outrora mergulhado em seus “Anos Dourados”, expansivo e solar. E a consciência de que uma perda estética é também sinal evidente de uma perda política. Mais do que nunca precisamos desta saudade.

Nísio Teixeira
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG



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