Análise | Morte

Morte e Guerra

Quando a morte nos afeta: Alan Kurdi e o poder de revelação do acontecimento

O texto analisa a morte do menino sírio Alan Kurdi que teve ampla repercussão em todo o mundo. A reflexão é feita a partir do modo como esse acontecimento afeta os sujeitos e o que ele revela acerca do contexto social contemporâneo.

Alan (esquerda),  três anos, e seu irmão Galip, cinco anos, morreram ao tentar atravessar trecho entre a Turquia e a Grécia de barco com os pais.

Alan (esquerda), três anos, e seu irmão Galip, cinco anos, morreram ao tentar atravessar trecho entre a Turquia e a Grécia de barco com os pais.

Uma imagem chocou o mundo nos últimos dias: a do corpo sem vida do menino sírio Alan Kurdi, de três anos, estendido em uma praia na Turquia. Identificado a princípio como Aylan, o garoto tentava fugir das atrocidades cometidas pelo grupo autointitulado Estado Islâmico na Síria. Ele viajava com o irmão Galip, de cinco anos, a mãe, Rehan, e o pai, Abdullah, em um barco que buscava a travessia entre a Turquia e a Grécia. Ao menos outras nove pessoas morreram afogadas e, da família Kurdi, apenas o pai sobreviveu para narrar toda a tragédia. O objetivo deles era chegar ao Canadá, onde residem parentes da família.

Esse acontecimento trouxe consternação e tristeza ao mundo. Em pouco tempo, a hashtag #KiyiyaVuranInsanlik, que significa humanidade levada pelas águas, foi registrada entre os trending topics da rede social Twitter. Isso revela o poder de afetação da morte do garoto ou a passibilidade desse acontecimento, para retomar a expressão de Louis Quéré. Mas é preciso compreender: de que maneira ele nos afeta? E, além disso, o que esse acontecimento revela do contexto social em que ele emerge? Sem a pretensão de esgotar todas as nuances desse trágico evento, o presente texto procura refletir sobre esses dois eixos: o poder de afetação e o poder hermenêutico desse acontecimento.

Diferente de outras mortes, não é o confronto com nossa própria finitude que se coloca em nossa experiência da morte de Alan. Somos confrontados, de fato, com nossa impotência diante dela (e de tantas outras que não ganharam as mesmas materialidade e visibilidade que a do menino sírio). Além disso, somos confrontados com a beleza, a alegria, a delicadeza e a inocência expressas nos rostos dos dois irmãos sírios em uma foto que circulou na internet depois da tragédia. Na praia, lugar que é frequentemente palco para a alegria das crianças (com suas bolas, seus baldinhos e seus castelos de areia), somos confrontados com a ausência da vida.

Diante disso, podemos retomar a pergunta que Hannah Arendt fez diante dos totalitarismos que emergiram na Europa, a partir da primeira metade do século XX: como compreender? Como compreender o próprio acontecimento e o mundo em que ele é possível? Isso aponta para o poder hermenêutico da morte de Alan – ou o que ela revela de nosso mundo.

A morte de Alan e dos que morreram com ele na travessia aponta para o drama enfrentado por milhões de refugiados – sírios, iraquianos, afegãos e de outras nacionalidades – que buscam recomeçar suas vidas longe das intermináveis guerras que assolam seus países de origem. Além disso, revela as profundas dificuldades enfrentadas por refugiados e imigrantes para encontrar asilo em diferentes países, nos diversos continentes. A foto de Alan é vista como um símbolo dessa crise migratória no mundo e nos convoca a não apenas compreender, mas agir. Afinal, como sugeriu Arendt, a compreensão é o outro lado da ação. Esse acontecimento nos convoca a agir não para o impossível resgate da vida de Alan, mas para impedir que outras como a dele sejam possíveis.

 

Paula Simões 

Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG Pesquisadora do Gris/UFMG 



Comentários

  1. Laura Correa disse:

    Belo texto, Paula. Revi e reli a foto pela sua leitura e reflexao. Nao havia pensado nos significados (alegres) da praia… imagem muito forte mesmo.

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