Análise | Gênero e sexualidade Movimentos sociais e ativismo

Qual é a graça?

O mês de novembro tem datas significativas relacionadas a movimentos sociais e direitos humanos. Em 20 de novembro, comemorou-se o Dia da Consciência Negra. Em 25 de novembro, celebrou-se o Dia Internacional pelo Fim da Violência contra as Mulheres, instituído pela ONU em 1993. A instituição dessas datas mostra que grupos sociais têm se organizado para combater desigualdades e violação de seus direitos.

Em novembro de 2013, duas peças publicitárias foram notícia por levantarem questões referentes à representação imagética e textual de mulheres. No início do mês, uma festa promovida pelo diretório acadêmico dos cursos de Veterinária e Aquacultura da UFMG foi divulgada por meio de um cartaz que provocou indignação e discussão no meio acadêmico. A peça publicitária trazia a imagem de um ser antropozoomórfico – meio mulher sensual, meio vaca. A montagem iconográfica vestia o animal de traços femininos e erotizados: lingerie preta e justa num corpo de mulher. Para não deixar dúvidas quanto ao gênero do animal, sua cara está maquiada. Apesar da postura ereta, a mulher-vaca mantinha os braços atrás do corpo, suas mãos (patas?) não aparecem, numa posição que sugere vulnerabilidade, passividade e disponibilidade. Para completar, um carimbo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento foi aplicado sobre a imagem, atestando a qualidade da carne e da festa.

O título, que era também o nome da festa, é “Calourada do Abate”. Temos aí um universo semântico que aproxima e une, por meio da imagem, mulher e animal e, por meio do texto, iguala a paquera e a conquista sexual ao abate, termo que significa, segundo o Houaiss, matança de animais destinados ao consumo. A festa “de qualidade” é vendida então a partir da associação da mulher como um animal a ser abatido e consumido. Trata-se de comparação no mínimo infeliz num país com altos índices de estupros e violência de gênero que culminam em mortes e numa universidade em que foram registrados recentemente episódios de agressão física e verbal a mulheres, negros/as e homossexuais em trotes e festas desse tipo.

Nesse contexto, não há piada, há uma reafirmação de lugares e práticas que revelam a permanência de relações desiguais – e simbolicamente violentas – de gênero. Ao sugerir que cabe ao homem a posição de caçador/abatedor e, à mulher, a condição de presa ou carne a ser consumida, o discurso presente no cartaz vai em direção oposta à luta dos movimentos feministas que defendem o direito da mulher ao seu corpo e, consequentemente, o direito de escolher com quem deseja se relacionar sexualmente.

A partir de comentário em um grupo no Facebook, a imagem do cartaz e as manifestações de indignação reverberaram e se fizeram ouvir dentro e fora da universidade. Além da repercussão nas mídias digitais, jornais de circulação local e nacional comentaram o assunto.  Até o Ministério da Agricultura e Pecuária se posicionou quanto ao uso indevido do seu carimbo. O D.A. mudou a imagem de divulgação da festa para a de um homem vestido de vaca, sem qualquer insinuação ou conotação sexual. Os organizadores da festa afirmaram que “em nenhum momento foi feita a arte com conotações machistas, a ideia sempre foi fazer uma brincadeira (…). (…) se a imagem foi ofensiva para algumas pessoas, pedimos nossas sinceras desculpas, mas em nenhum momento essa foi a intenção da organização!”.

Também no início do mês de novembro, três mulheres perderam processo contra a cervejaria Devassa em que acusavam a empresa de desrespeito à população negra. A peça publicitária, veiculada em 2010 e 2011,  tinha como principal elemento uma ilustração em que uma mulher negra, em sumários trajes de cabaré, está apoiada nos braços e inclinada para trás, em posição de disponibilidade sexual. Nota-se que suas pernas estão separadas, pois só se vê a esquerda. Assim como no cartaz da vaca, suas mãos não aparecem.

Numa linha de raciocínio que parece continuar a ideia da marchinha racista “O teu cabelo não nega”, a peça afirma que “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”, completando com os atributos que tratam das características do produto: “Devassa negra. Encorpada, estilo dark ale de alta fermentação. Cremosa com aroma de malte torrado”. A comparação – ou melhor, a equivalência – entre corpo feminino e produto não é novidade no discurso publicitário. Nessa representação específica, a mulher negra é definida e reconhecida pelo corpo, carrega uma verdade que é condicionada ao seu corpo.

No imaginário hegemônico reproduzido nessas peças de publicidade, a mulher – e principalmente a mulher negra – é indissociável do seu corpo. Historicamente, o pensamento  dominante associa o homem branco às atividades intelectuais, da cultura. A grupos minoritários como mulheres, negros e indígenas estão associados, em diversos discursos, uma proximidade à materialidade do corpo, à natureza e à animalidade, muitas vezes de forma pejorativa, às vezes de forma alegadamente elogiosa. Longe de querer supor que as agendas e questões são iguais para os diferentes grupos citados, há que se pensar a interseccionalidade no caso da mulher negra.

Na sentença, o juiz que julgou o processo afirmou que “No caso em análise não se percebe nenhuma mácula na imagem da mulher negra. (…) a ideia é causar um impacto com humor com o objetivo, certamente, de provocar comentário, chamar a atenção do consumidor. Se alguma conclusão pode ser tirada a respeito, é exatamente o elogio ao corpo da mulher”.

Olhando para os dois casos, faz-se necessário pensar nos limites do humor e da “brincadeira” quando esses recursos servem a solidificar lugares de poder. Os dois casos e seus desdobramentos, assim como sua justificativa bastante irresponsável, confirmam a importância do pensamento e da militância feminista e antirracista ainda nos dias de hoje.

um-cartaz-com-a-reproducao-de-uma-vaca-com-trajes-femininos-para-promover-uma-calourada-do-curso-de-veterinaria-da-universidade-federal-de-minas-gerais-causou-polemica-na-instituicao-de-ensino-a-peca-foi-138365080 (1)  devassa1

Laura Guimarães Corrêa

Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Pesquisadora do Gris/UFMG

Foto: Montagem Grislab



Comentários

  1. Gáudio Luiz disse:

    Se o “humor” do anúncio da calourada da veterinária foi de uma infelicidade sem tamanho, me lembro que em Julho (em meio a uma ocupação da reitoria) tive a infelicidade de me deparar com esse cartaz – de uma ação institucional da UFMG com o objetivo de conseguir voluntários para uma pesquisa de fertilidade.

    https://fbcdn-sphotos-g-a.akamaihd.net/hphotos-ak-ash3/998549_10201534754468304_1128709527_n.jpg

    Nós que estávamos na ocupação ficamos nos perguntando se um enfermeiro “gostosão” seria a imagem da campanha, caso tivesse levado em conta o público gay ou fosse de doação de óvulos…

    Naquela ocasião, o cartaz não repercutiu tanto – talvez por ser “mais leve”, que cabe sem menores problemas no rótulo de “humor”. E é curioso pensar que certas falas, que em outros tipos de discurso seriam provavelmente sancionadas pela lei, conseguem ser absorvidas ou mesmo passarem despercebidas quando no quadro “humor”.

    Uma “verdade” inconveniente é que o machismo é cotidiano, ele muitas vezes não “acontece”. Ele é naturalizado de diversas formas e faz parte das instituições, mesmo daquelas que idealmente se opõem a ele. Por isso, ainda que não sendo “dono da verdade” e muitas vezes tachado de “chato” ou “radical”, o feminismo é fundamental (ou os feminismos são fundamentais) quando entra(m) na disputa de sentidos, problematizando e tensionando questões que podem muito bem “passar batido”.

  2. André Melo disse:

    Toda discussão sobre as representações que são construídas nos meios de comunicação e na própria sociedade são importantes, especialmente se considerarmos que não existe uma verdade objetiva, que a identidade dos indivíduos não é dada a priori. Nesse sentido, na medida em que qualquer grupo social se considera mal representado, um dos caminhos legítimos para mudar essa situação é deixar a zona de conforto e entrar no jogo político e social, se organizando para que essas representações com as quais não concordam sejam desconstruídas ou reconstruídas. A denúncia é uma ação importante, mas, como se viu nos exemplos apresentados, não é suficiente em muitos casos. Para resolver isso é necessário que os grupos civis se mobilizem de forma a eleger representantes comprometidos com suas ideias para promover a reformulação das leis. Apesar desse processo ser lento não deve ser desprezado e nem encarado como a única forma de atuação dos grupos civis.

    Todo grupo que luta para impor um determinado consenso deve ter consciência de que sua verdade não é a única nem a melhor, mas apenas mais uma verdade que será provisoriamente aceita, caso venha a vencer a disputa (que não é “justa”, nem equilibrada – e nunca terá essas características ideais). Essa percepção talvez não seja “perfeita”, muito menos “a correta”, mas dilui as certezas dos grupos radicais e permite uma maior tolerância entre ideias, posturas e pessoas na medida em que todos aceitam o fato de que não sabem “a verdade”.

    André Melo
    Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG
    e pesquisador do Gris/UFMG

Comente

Nome
E-Mail
Comentário