Análise | Gênero e sexualidade Questões raciais

Valéria e a branquitude na balança da igualdade

Fernando Frazão/Agência Brasil

“É meu direito enquanto negra, como mulher, de trabalhar. Eu estou trabalhando. Eu quero trabalhar.” É com essa frase que assistimos a advogada carioca, Valéria dos Santos, ser algemada e arrastada para fora de uma sala do 3º Juizado Criminal de Duque de Caxias (RJ). A prisão aconteceu por ordem da juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos, que insistia em encerrar a audiência, mesmo sob os protestos de Valéria, que apenas pedia vistas da contestação contra sua cliente. Um procedimento previsto por lei.

A situação repercutiu nas redes sociais, causando grande comoção e indignação da maior parte das pessoas. A imprensa tradicional noticiou o fato nomeando-o como uma situação de abuso de poder e violência, que de fato foi. O Programa Encontro com Fátima Bernardes convidou a advogada para comentar sobre o caso e produziu um especial sobre racismo estrutural na sociedade brasileira. Outras mulheres negras, como a cantora Negra Li e a psicóloga Cida Bento, foram convidadas para relatarem suas próprias experiências e comentarem sobre o caso.

Nas falas de todas elas, o mito da democracia racial é desvelado. A ideia de que todo/a brasileiro/a gozaria dos mesmos direitos e condições de vida independente da cor de sua pele serve de base para a prática cotidiana do racismo, abrindo caminho para que situações como a sofrida por Valéria aconteçam, se reproduzam e não sejam enquadradas como crimes de racismo. Na verdade, o que acontece é exatamente o contrário: a pessoa negra é responsabilizada pela injúria sofrida e, com isso, criam-se os estereótipos em torno da negritude: “vitimista”, “neguinha atrevida”, “preta raivosa”, “barraqueira”. Termos como estes, que designam os corpos negros em situações de abuso e violência – principalmente as mulheres negras -, constroem sentidos para a negritude, encobrindo o papel violento que a branquitude desempenha nessas situações. Em tempo, vale notar que a juíza leiga (que é branca) foi inocentada de qualquer prática de abuso pela comissão judicial que investigou o caso, alegando que Valéria teria se jogado no chão, sendo “momentaneamente” algemada, pois estaria nervosa na ausência do representante da OAB. Segundo o desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, ela estava se debatendo no chão até a chegada do representante, quando “ela se acalmou, havendo pronta retirada das algemas.”

Enquanto era algemada, Valéria denuncia a atitude de omissão de seus colegas brancos, que presenciam a cena e não reagem a seu favor. Não havia dúvidas de que uma injustiça estava sendo cometida, mas as regras tácitas do jogo da democracia racial dizem que Valéria é a culpada do que lhe acontece e cabe a ela aceitar as consequências de seus atos. É a parte que lhe cabe nesse latifúndio. E o latifúndio pertence a quem sempre pertenceu: uma elite branca e machista.

Não foi ao acaso que esse grupo social chegou na posição que hoje ocupa. Foi preciso exercer uma série de violências de toda ordem (física, simbólica, social) para que se estabelecesse neste lugar, ao mesmo tempo que se produzia um discurso legitimador do mesmo. Assim, a sociedade moderna construiu um sistema de moralidade baseado fundamentalmente na igualdade de todos os seres humanos, sem deixar claro de que “seres humanos” estava falando. As mulheres e os/as negros/as, inicialmente, ficaram de fora. Valéria estava duplamente de fora.

Felizmente, diversas movimentações se mobilizaram em torno da igualdade ao longo do tempo, o que faz com que a balança seja forçada a pender para outro lado. Infelizmente, o equilíbrio ainda está longe de ser atingido. Para que os pratos se alinhem, é necessário também pesar a branquitude.

Maria Lúcia de Almeida Afonso

Mestranda em Comunicação Social na UFMG, pesquisadora do GRIS e bolsista da Capes



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