No último domingo (12), um funcionário de uma empresa de segurança entrou em uma boate gay de Orlando e cometeu o maior ataque a tiros da história dos EUA, deixando, pelo menos, 49 pessoas mortas e 53 feridas. O que este trágico acontecimento revela sobre a homofobia e os crimes homofóbicos em nossas sociedades modernas – e qual é a realidade dos LGBTs que vivem no Brasil?
Assim que a mídia toma conhecimento de algum massacre ou crime bárbaro, um de seus primeiros movimentos é o de encontrar, na biografia do autor do crime, elementos que expliquem seu comportamento violento e motivações para ato criminoso. No caso de Omar Mateen, 29 anos, apontado como o autor do massacre de LGBTs na boate Pulse (Orlando, EUA), podemos identificar a convocação de dois elementos biográficos: 1) sua possível associação com o califado terrorista do Estado Islâmico e 2) sua aversão a homossexualidade.
Antes de tudo, precisamos lembrar que, nos Estados Unidos e países do ocidente, em tempos pós 11/09 e de recorrentes ataques do EI, o terrorismo é erroneamente generalizado à origem e religião de pessoas mulçumanas. O candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, atribuiu o massacre de Orlando ao que, segundo ele, seria um “terror islâmico radical”; ele já defendeu, inclusive, o impedimento da entrada de mulçumanos no país e a proibição de todas as mesquitas no território norte-americano.
Em um movimento semelhante, horas após o massacre, aqui no Brasil, o pastor Silas Malafaia foi ao Twitter reivindicar a exigência de visto brasileiro para “essa gente que vem desses países” e “que entra no país livremente” por culpa, segundo ele, do PT. O pastor Marco Feliciano (PSC-SP) foi à rede social para acusar partidos de esquerda e a presidenta Dilma Rousseff de apoiar e financiar grupos autores de outros ataques terroristas, como o Hamas, partido palestino que controla o território da Faixa de Gaza. Feliciano também afirmou que grupos LGBTs usaram o atentado “para se promover, como se a razão deste ataque fosse apenas a homofobia”.
Ao convocarmos, portanto, a discussão do terrorismo, precisamos ser cautelosos: a resposta para o terror de milícias armadas como o Estado Islâmico – a quem o atirador norte-americano alegou estar associado – jamais pode ser a exclusão social, a desinformação ou o preconceito contra os seguidores do Islã.
Na verdade, a discussão sobre a chance de Mateen ser um “soldado” ou manter relações com grupos terroristas – possibilidade que ainda não foi confirmada, até a redação desta análise, em 14/06/3016 – tende a esconder um aspecto fundamental desta tragédia: trata-se aqui, acima de tudo, de um crime cujo alvo era a própria comunidade LGBT. Até o momento, a mídia discute duas possibilidades controversas: 1) a especulação se Mateen era um homossexual afligido pela vergonha e auto rejeição, que acabaram alimentando a sua homofobia violenta – testemunhas alegaram que o atirador frequentava a boate Pulse e possuía perfil em aplicativos de relacionamento – ou 2) se ele era, de fato, um heterossexual movido pelo ódio aos gays, que poderia, inclusive, estar estudando há algum tempo seu alvo – o próprio pai de Mateen relatou ao público que o filho possuía uma grande repulsa a homossexuais.
Tanto a auto rejeição – e a rejeição de semelhantes – quanto a abominação do outro que é diferente podem ser compreendidas como uma forma de ódio. Este ódio, de fato, não é exclusivo de nenhuma organização islâmica específica. Diferentes instituições religiosas ocidentais possuem um discurso excludente de gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans – discurso esse que acaba usado por agressores para legitimar violências cotidianas, verbais ou físicas, como também o assassinato e perseguição de LGBTs em diversos países.
De acordo com levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), no Brasil, em 2015, foram 318 mortes de LGBTs apuradas em canais de mídia e por outros relatos públicos no país [1]. A maioria destes crimes acontece durante a madrugada, em locais isolados ou privados; as poucas testemunhas raramente dão depoimento, por medo ou preconceito. Cerca de 25% das mortes foram causadas por asfixia ou enforcamento, espancamento, pauladas e apedrejamento. Em menos de 3% dos casos houve investigação e acusação dos autores dos crimes. Nos seis primeiros meses de 2016, cerca de 100 LGBTs foram mortos em todo o país – no mês de janeiro, o GGB contabilizou 30 obituários, uma morte a cada 22h. Muitas das vezes, as vítimas LGBTs, antes de serem mortas, são ainda tratadas com crueldade e torturadas.
Desta forma, o massacre serve como um doloroso lembrete dos efeitos da LGBTfobia, tanto para os EUA – que registrou, em 2013, 5.928 crimes de ódio contra pessoas, grupos ou instituições LGBTs – quanto para nós, brasileiros. Afinal, as mortes de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans e não binárias em nosso país são numerosas, mas não alcançam a visibilidade necessária; se tornam apagadas ou, ainda pior, dadas como naturais, justificáveis e não dignas da indignação pública.
No Brasil, ainda há um agravante político: as fortes bancadas da Bíblia e da Bala, no Congresso, nas quais participam, respectivamente, o deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) e Jair Bolsonaro (PSC-RJ) – o ex-militar já afirmou que a violência pode mudar o “comportamento” de homossexuais. Estes dois grupos têm como pauta a revogação de direitos civis e legislações favoráveis a LGBTs, como também a revisão do Estatuto do Desarmamento, para que todo brasileiro tenha o direito de possuir armas de fogo em casa, no pretexto de legítima defesa e proteção de seu patrimônio. Enquanto isso, um dos problemas mais urgentes nos EUA é a facilidade de aquisição de armas de fogo – o próprio discurso de Obama sobre o massacre de Orlando foi o seu 13º pronunciamento defendendo, mais uma vez, a restrição da venda de armas após algum ataque, em oito anos de governo.
Há de se perguntar: o maior acesso a armas de fogo no Brasil poderá tornar ainda mais frequentes a violência e assassinato de LGBTs? Quem defende a vida de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans em nosso país? Quem está preocupado com as vidas e estatísticas – quase uma morte de LGBTs por dia? O massacre dos jovens nos Estados Unidos não deve, jamais, ser esquecido – da mesma forma, este acontecimento também precisa acionar nossa indignação com outro massacre: o que é diário, silencioso, de nossas crianças, jovens e idosos LGBTs.
[1] Em 2014, a contagem foi de 331 mortes, e em 2012, 338 mortes. O número tende a ser bem maior se levarmos em conta que nem todos os assassinatos motivados por LFBTfobia são identificados ou declarados como crimes de ódio.
Lucas Afonso Sepulveda
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social-UFMG
Pesquisador do Gris
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de junho, definido em reunião do GrisLab.