A análise sobre o estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos, no Rio de Janeiro, aborda a inserção deste caso numa estatística assustadora sobre os estupros no Brasil, a cultura machista enraizada nas relações sociais e instituições e os desdobramentos deste acontecimento.
No fim de maio uma adolescente foi estuprada por vários homens no Rio de Janeiro, filmada e exposta nas redes sociais. A ocorrência ganhou intensa repercussão, inclusive internacional, cobertura midiática e manifestação da sociedade. O acontecimento e seus desdobramentos também desencadearam ações e posicionamentos públicos de igual repercussão. Foi o caso do afastamento do delegado encarregado das investigações e da decisão do Ministério Público de investigá-lo , bem como da delegada que o substituiu indiciar sete pessoas, dar entrevista para vários meios de comunicação e ressaltar como a cultura do estupro é enraizada no país. Alguns dias depois, a tragédia de Castelo do Piauí – que também tematiza o problema do estupro -, completaria um ano.
O acontecimento trouxe à tona, além do despreparo do poder público em acolher as vítimas e investigar os crimes, um machismo latente, muitas vezes escondido sob o véu do senso comum. A desconfiança dirigida à vítima, por exemplo, deu o tom de várias falas do advogado afastado, dizendo que iria apurar os fatos: se havia ocorrido, de fato, um estupro. Culpabilizar a mulher, também é recorrente: onde ela estava? Com que roupa? E as companhias? Ah, ela era usuária de drogas! Já tinha até filho e se envolvia com o tráfico. Assim como o delegado, um suspeito do crime também se pronunciou dizendo que a errada era a vítima. “Ali era o lugar dos traficantes, nem era o lugar dela. Errada era ela de estar ali”.
Todos as tentativas de justificação para o crime, são apenas isso, tentativas. A vítima nunca tem culpa, mas esse acontecimento revela o quanto ainda persiste o pensamento segundo o qual, a depender das condições e do momento, um estupro pode ser relativizado, ou até merecido. Ninguém merece passar por isso, ninguém deveria passar por isso.
Além do estupro, os indiciados também respondem por outros crimes como filmar e divulgar as imagens do acontecimento – outra faceta cruel do episódio. Não apenas vítima de um crime sexual, a adolescente ainda tem que conviver com a realidade de várias pessoas terem visto a cena, compartilhado e sido cúmplices do ocorrido.
O acontecimento expõe uma outra característica da nossa sociedade e desses tempos: a exposição talvez sem limites de todos os momentos das nossas vidas em espaços online. Por que aqueles envolvidos filmaram e compartilharam o estupro? Vários pronunciamentos defenderam que aqueles homens não são doentes: sabiam o que estavam fazendo e. portanto, precisam ser responsabilizados pelo feito. Se publicizaram o crime com tanta naturalidade, talvez é porque percebem que parte da sociedade considere normal estuprar uma menina de 16 anos desacordada. Filmar, compartilhar e se gabar do feito, portanto, parece também fazer parte.
Se, por um lado, o acontecimento revelou práticas e posturas tão desumanas em nossa sociedade, por outro, desencadeou um intenso movimento de ações e discursos de solidariedade, de necessidade de proteção às vítimas, de fortes reivindicações de combate à cultura do estupro, desde a socialização das crianças, nas escolas, nas famílias, nas relações sociais, no trabalho… Segundo dados do último anuário de segurança pública, a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada. Considerando que essa estatística observa os casos reportados à polícia, infelizmente, o número pode ser bem maior. A página 33 dias sem machismo, por exemplo, propõe um desafio a cada dia do mês, na tentativa de desnaturalizar comportamentos machistas. Outras iniciativas que surgiram no período – como a tematização do problema na mídia, a entrevista da delegada explicando o que pode ser considerado estupro no programa Fantástico, as várias postagens pedindo a investigação e a punição dos envolvidos – são mobilizações importantes. Elas nos fazem acreditar em mudanças e alimentar a expectativa de que um dia não ocorrerão mais estupros.
Laura Antônio Lima
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisadora do Gris
Esta análise faz parte do cronograma oficial de análises para o mês de julho, definido em reunião do GrisLab.