Os kamayurá, povos indígenas do Alto Xingu, realizaram o seu Kuarup deste ano nos dias 3 a 6 de agosto, na aldeia de Ipawu, comandada pelo cacique Kotoque.
Diversas festividades cívicas e religiosas no Brasil constituem um “acontecimento”, se não partilhado por todos, pelo menos recebendo grande atenção midiática. As comemorações do calendário indígena ainda não entraram nesta pauta e constituem acontecimentos à parte.
O Kuarup é um momento ímpar na vida dos povos do Xingu; ele reverencia a memória de membros da comunidade que faleceram em tempos recentes, ao mesmo tempo que faz sua despedida. Ele registra a passagem do luto (tempo triste) para a alegria (tempo da vida recomeçar).
Trata-se de um ritual de ordem mítico-religiosa, que conjuga transcendência e atividades físicas; ele estabelece uma relação com divindades e com o espírito dos que se foram, e ao longo dos dias diversas atividades são desenvolvidas, como lutar, dançar, alimentar o visitante.
Este Kuarup homenageou três pessoas – uma criança, uma idosa e um médico da Escola Paulista de Medicina (Alfredo Baruzzi), que durante muito tempo desenvolveu trabalhos com a comunidade. Em razão desta homenagem a Baruzzi, mas também pela forte dimensão estética do ritual, registrou-se uma grande presença de “brancos” (não-índios), sobretudo fotógrafos.
Outras etnias do Alto Xingu foram convidadas a participar das festividades; elas são recebidos na aldeia, acampam em seus arredores, são alimentadas e participam das danças e das lutas. O huka-huka (arte marcial) é um dos pontos fortes do Kuarup; os melhores lutadores de cada etnia se enfrentam (é uma luta de duplas), e a soma de vitórias e derrotas indica o campeão.
A dimensão mítica-religiosa do Kuarup se refere a seu mito fundador: Mawutzinin, o primeiro ser, e de onde todos vieram, com pena dos que choravam seus mortos, se propõe a ressuscitá-los. Então ele buscou troncos no mato, fincou no meio da aldeia e mandou enfeitá-los como se fossem os mortos, para restituir-lhes a vida. Este mito, e o ritual que o mantém ativo, exercem uma forte função identitária. Os membros das comunidades indígenas reforçam seu sentimento de pertencimento e o orgulho de ser desta ou aquela etnia.
Ele promove também o reforço das normas, da tradição, bem como o sentido de hierarquia – os “donos dos mortos”, os “donos da festa” (escolhidos pelo conselho da comunidade), comandam o ritual, conforme a tradição e o ordenamento dos pajés. Ao mesmo tempo, o cacique da aldeia que promove a comemoração, em acordo com as lideranças dos povos convidados, garante a ordem durante as festividades. Vislumbra-se assim uma dimensão política.
Podemos ver ainda um aspecto comercial; considerando o grande afluxo de “brancos”, é o momento para as várias comunidades presentes de vender ou trocar o artesanato que produzem ao longo do ano – bijuterias, cerâmica, objetos em palha.
Finalmente, vale ressaltar a dimensão de visibilidade; mesmo não tendo se tornado ainda um acontecimento midiático, o Kuarup faz falar, produz imagens e narrativas que circulam entre grupos e através das redes sociais. Ajuda, portanto, no reconhecimento desses povos fundadores da nação brasileira.
Trata-se, assim, de um acontecimento multifacetado, que promove e reforça as relações internas, estabelece e fortifica as crenças com o transcendente, constrói sua imagem e reconhecimento externo.
Sem dizer que é uma experiência única para quem tem o privilégio de acompanhá-la.
Vera França
Coordenadora do GrisLab
Professora Titular do PPGCOM-UFMG