Análise | Diário da Quarentena Questões indígenas

Diante da Covid-19, povos tradicionais lutam contra o governo anti-indígena

O maior grupo de risco brasileiro em períodos de epidemia é historicamente o de povos indígenas. Sua luta pela sobrevivência, que um dia já dependeu apenas da natureza e de suas dádivas, hoje é permeada pela negligência governamental, pelo risco vindo de instituições que deveriam protegê-los e pela violência que assusta tanto quanto o vírus.

Foto: Alex Pazuello

Ao se acostumar com a frequência de escuta do termo “grupos de risco”, boa parte das pessoas não reflete sobre como alguns desses grupos têm sofrido mais que outros na tentativa de isolamento e de proteção da Covid-19. Se, na teoria, todas as vidas valem a mesma coisa (e pouco valem para o atual governo), na prática temos o que Kaê Guajajara e Kandú Puri definem como “o maior grupo de risco há mais de 500 anos”, cujo isolamento voluntário é constantemente desrespeitado. 

Muitos setores pararam ou recuaram no Brasil desde a chegada da pandemia, mas atividades como mineração e extração ilegal de madeira não tiveram pausa; ao contrário, se intensificaram nesse período em que as fiscalizações estão mais raras. O desmatamento e a mineração atingem com frequência comunidades indígenas, inclusive em reservas territórios já reconhecidos e onde essas práticas deveriam ser interditadas. A ameaça de genocídio iminente pode ser invisível (no caso do vírus) ou estar nas armas de fogo que os massacram diariamente (legitimadas pelo presidente), além do governo anti-indígena que está atualmente no poder.

Ainda que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) tenha reivindicado ao atual governo a implementação de um Plano de Ação Emergencial, para evitar a contaminação de comunidades pelo novo coronavírus, e que o Abril Indígena, um dos principais momentos de luta por direitos, tenha abdicado das atividades presenciais, é perceptível que o governo pouco se importa com essa parcela populacional. É emblemática a edição da Portaria no.419/PRES, em que um artigo permite que coordenações regionais da Funai autorizem o contato com “comunidades indígenas isoladas”. Na prática, o governo tem dado mais subsídios à disseminação do próprio vírus do que assistência às comunidades, cujo isolamento continua a ser sistematicamente desrespeitado, inclusive pelo próprio Ministério da Saúde. A Fundação Nacional do Índio tem demorado a agir, liderada por pessoas ligadas ao agronegócio.

Não há plano de prevenção e combate à doença nas aldeias e comunidades porque esse governo, mais do que outros, legitima o tratamento desses povos como uma “segunda classe”, como coloca Tracy Guzmán. A partir da perspectiva de Giorgio Agamben, podemos inferir que os povos nativos do território brasileiro têm seus espaços e direitos negados desde a constituição do próprio corpo, da própria origem, não são vistos como seres políticos ou cidadãos. Falta segurança alimentar, já que seu território geralmente é muito pequeno e ameaçado por grileiros, grandes fazendeiros e madeireiros, bem como produtos de higiene e medicamentos.

Aiton Krenak, ao afirmar que seu povo está encurralado e refugiado no próprio território há muito tempo, sugere que o isolamento em uma reserva definitivamente não é o mesmo que em um apartamento, mesmo que os Krenak ainda estejam sentindo o luto pelo Rio Doce. Em nosso isolamento diante da Covid-19 e com a vida sob constante ameaça, nossa restrição de deslocamento é uma “amostra grátis” do que as populações indígenas sofrem em um confinamento que dura séculos, que não respeita seus territórios nem conhecimentos autóctones e cosmovisões. A necropolítica há muito opera sobre esses povos e corpos; eles torcem para que não voltemos à “normalidade”.

Tamires Ferreira Coêlho, professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFMT, doutora em Comunicação pela UFMG e jornalista.



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