Segundo lugar no ranking mundial de cirurgia plásticas e prestes a retornar ao Mapa da Fome da ONU, o Brasil segue um país de mitos, neuroses e contradições, vitimizando um grande número de brasileiras a cada ano. A morte de Lilian Calixto por um procedimento clandestino executado pelo famoso Dr. Bumbum revela nossas mazelas e faz pensar sobre as origens culturais deste fenômeno.
No dia 14 de julho, a bancária Lilian Calixto morreu em decorrência de um procedimento plástico-cirúrgico realizado pelo médico-celebridade Denis Furtado, o Doutor Bumbum, em seu apartamento na Barra da Tijuca. Ela viajou de Cuiabá até o Rio de Janeiro para realizar uma bioplastia nos glúteos, utilizando PMMA (polimetilmetacrilato). Este é o acontecimento que motiva a análise hoje e que nos permite perguntar: o que este acontecimento nos revela?
Antes de tudo é necessário ter em mente o contexto em que este acontecimento ocorreu. O fato de uma mulher brasileira ter falecido por causa de uma cirurgia plástica faz relembrar que o Brasil é o segundo país no ranking mundial de cirurgias plásticas, perdendo apenas para os Estados Unidos. Comparativamente, a classificação parece um tanto quanto absurda, considerando as diferenças socioeconômicas entre as duas nações no âmbito da geopolítica. O Brasil ainda é um país que luta contra a fome, o desemprego e a miséria, tendo mais de 14 milhões de brasileiros em situação de pobreza extrema. Ao lado disso, temos mais de 13 milhões de brasileiros desempregados, o maior número desde 2012. Vale notar que em 2014, o país teria finalmente saído do Mapa da Fome da ONU – uma conquista agora ameaçada. O contraste entre a extensão de nossas necessidades básicas e o grande investimento em procedimentos cosméticos seria curioso – se não fosse triste.
O segundo ponto que levantamos gira em torno do status de celebridade do Dr. Bumbum, médico realizador desse procedimento. Sabemos que na contemporaneidade ocorreu uma ampliação dos perfis passíveis de celebrização, em razão do desenvolvimento de novas tecnologias e da mudança do quadro de valores sociais. Atualmente, detectamos o surgimento de diversos perfis de profissionais da saúde nas redes sociais, que acentuam os traços individuais da personalidade deixando de lado suas credenciais profissionais. No caso do Dr. Bumbum, admira-se sua fala descontraída, o sotaque carioca e o corpo “sarado”, deixando às sombras sua ficha criminal e a cassação de seu registro médico no Distrito Federal.
Para além de suas características pessoais, a atuação do Dr. Bumbum nas redes valoriza um ideal de corpo feminino específico, de voluptuosidade e curvas. A cultura brasileira, com suas neuroses e contradições, reafirma este ideal para as mulheres do país, tendo na “bunda” sua característica central. É a marca da mulher brasileira, expressão de nossa identidade nacional. Segundo Lélia González, essa construção tem suas bases no mito da democracia racial, através do qual apresentamos uma identidade nacional que incorpora traços da população afrodescendente apenas para negar a dimensão estrutural na qual o racismo se espraia.
Para as mulheres, o ideal de corpo torna-se este, que é reconhecido pela branquitude brasileira como o da mulata, objeto sexual do fetiche masculino, que tem bunda grande, coxas grossas e quadris largos. Aí, fala-se que é este o corpo da mulher brasileira, é a nossa particularidade frente ao mundo, mas que deve ser reproduzida e generalizada entre nós. O bumbum se transforma, portanto, em um objeto de desejo para todas, custe o que custar. No caso de Lilian Calixto, custou-lhe a vida. Quantas mais vão ter que morrer?
Maria Lúcia de Almeida Afonso
Mestranda em Comunicação Social na UFMG, pesquisadora do GRIS e bolsista da Capes