Como o acontecimento e o problema público se relacionam? Na análise a seguir, a pesquisadora Terezinha Silva parte de situações ligadas ao transporte público vivenciadas em três capitais brasileiras para discutir essa articulação.
Um aspecto importante ao observar e analisar um acontecimento é ver o quanto ele carrega consigo ou faz revelar problemas que afetam a vida coletiva. Analisar um acontecimento e as reações a ele nos permite também identificar a maneira como lidamos e tratamos tais problemas: nós, cidadãos, as mídias, os poderes públicos e outras instituições. Esta relação entre acontecimento e problemas públicos nos parece ser uma das contribuições da abordagem do acontecimento proposta por Louis Quéré (1997; 2005).
Certos acontecimentos, diz Quéré, têm o potencial para mostrar problemas, novos ou já existentes, que afetam indivíduos e coletividades. Eles abrem, ao mesmo tempo, a possibilidade para a ação, inclusive a ação coletiva, visando a discussão e a elaboração de soluções a tais problemas públicos. Afetados por acontecimentos, sujeitos e instituições são interpelados a agir, a dar respostas ao acontecido.
Três ocorrências recentes em três grandes capitais brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte) mostram este vínculo entre acontecimento e problemas públicos. As três se inscrevem no campo dos problemas relacionados às condições do serviço público de transporte no Brasil. E revelam aspectos importantes na maneira como concebemos e tratamos o problema.
Em um ônibus lotado na cidade do Rio de Janeiro , a atriz Lucélia Santos foi fotografada por uma usuária do mesmo coletivo em um “momento gente como a gente”, no dia 12 de março, conforme o relato do Jornal Extra: “viajava em pé num ônibus sem ar-condicionado, da linha 524 (Botafogo – Barra da Tijuca)”. Em que pese reações públicas de alguns internautas e leitores apoiando Lucélia Santos por usar transporte público, chama a atenção outras posturas, inclusive o enquadramento midiático, que fazem piada sobre as condições financeiras ou até se escandalizam com a imagem mostrada da atriz – “flagrada em ônibus”.
Indignada com a reação e tratamento dado, Lucélia usa o twitter no dia seguinte para problematizar a situação. Questiona as visões que se tem no Brasil sobre os usuários do transporte coletivo – “ O Brasil é o único país que conheço onde andar de ônibus é politicamente incorreto!!!!!!!” -, o consumismo e a idolatria por carros. Cobra da imprensa outro tipo de tratamento do problema e, dos governos, o investimento “em transportes decentes’, já que hoje “são precários e ordinários, o que mostra total desrespeito à população!”
No metrô da cidade de São Paulo, além da situação problemática e crônica de superlotação, um acontecimento recente revela um novo problema associado às condições do transporte coletivo: o assédio e a violência sexual contra mulheres. No dia 17 de março, um estudante universitário foi preso em flagrante por tentativa de estupro em um vagão lotado da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. Ele revelou à polícia “que acompanha as ações de um grupo de internautas que assedia mulheres em trens da linha Rubi da CPTM e as filma para, posteriormente, postá-las nas redes sociais”. Dois dias depois mais dois homens são presos, desta vez na Estação da Sé, acusados de abusar de mulheres em trens do Metrô.
Esses acontecimentos na capital paulista trouxeram à tona que 17 homens já foram presos ao longo de 2014 por atos semelhantes nos trens, e desencadearam uma onda de denúncias dando visibilidade ao problema. Nesse contexto, surge, dias depois, a reação indignada de usuários, sobretudo de mulheres, a uma inserção publicitária sobre o Metrô de São Paulo, veiculada pela rádio Transamérica. Na propaganda, um ator destaca os investimentos do governo estadual nos trens e diz que metrô lotado “é bom prá xavecar a mulherada”.
Em Belo Horizonte, a via crucis não é diferente para quem utiliza transporte público. Ainda assim, o poder público local autorizou recentemente (como em outras capitais) o aumento das passagens de ônibus. O Ministério Público interviu e conseguiu suspender o reajuste através de uma liminar, desrespeitada pelas empresas de ônibus ao longo do dia 06 de abril, quando circularam pela capital mineira cobrando tarifa mais cara. Enquanto usuários e integrantes do movimento Tarifa Zero protestaram – para “alertar a população que ela está sendo roubada” – o prefeito criticou a suspensão do reajuste , argumentando que o aumento está amparado em contrato e que as empresas estão sendo prejudicadas.
Estopim das manifestações de junho de 2013 no Brasil, o problema do transporte público diluiu-se em meio à explosão de diferentes reivindicações e interesses que marcaram aqueles protestos. Mas continua latente, candente, provocando os cidadãos e cobrando resposta à altura por parte dos governantes e da imprensa, cujos posicionamentos passam muitas vezes bem longe de onde se imagina estar o interesse público. É o que parecem revelar os acontecimentos aqui mencionados. Eles expõem o abismo existente entre o mundo real das Lucélias e outros cidadãos brasileiros – que usam diariamente e reivindicam qualidade e dignidade no transporte coletivo – e o mundo da propaganda política ou de políticas públicas que vão no sentido contrário ao que é reivindicado ou apontado como uma possível solução ao problema do transporte e da (in)mobilidade urbana.
Referências:
QUÉRÉ, Louis. L´événement. In: Sociologie de la communication. BEAUD, Paul et al. (sld). Reseaux, CNET, 1997.
_____. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. In: Trajectos. Revista de Comunicação, Cultura e Educação, nº 6. Lisboa: ISCTE / Casa das Letras / Editorial Notícias, 2005, p. 59-75.
Foto: Reprodução Estado de Minas
Terezinha Silva
Professora colaboradora do Departamento de Comunicação da UFMG e pesquisadora do GRIS (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade).
A pesquisadora tem toda razão ao dizer que vários acontecimentos apontam para o mesmo problema. Gostaria de acrescentar à discussão, a indignação da população que se materializa de maneira mais violenta nos ônibus queimados nas principais capitais brasileiras, como sinal de protesto – ironicamente – contra a violência, na maioria das vezes.
No Rio de Janeiro, as ações da polícia “pacificadora” são colocadas em dúvida, quando Amarildos e dançarinos são mortos sem explicações. Enquanto isso, a maioria da população brasileira anda espremida dentro de verdadeiras “latas de sardinha” que não são a melhor solução nem para o transporte público nem para o trânsito caótico das grandes cidades. O ônibus virou um símbolo da indignação brasileira, talvez porque seja o resumo de vários problemas em um só: falta de respeito, preços altos e qualidade ruim para um dos direitos básicos do cidadão – o direito de ir e vir.