No domingo, dia 02 de setembro, assistimos perplexos e impotentes ao incêndio do Museu Nacional. Junto com o prédio histórico da Quinta da Boa Vista, mais de 20 milhões de itens foram rapidamente consumidos pelo fogo. Ainda não é possível dimensionar o que será resgatado das cinzas e nem quanto tempo levará para que o Museu seja reaberto, porém, diante de tal acontecimento, uma certeza se evidencia: vestígios, documentos e artefatos artísticos representativos da memória e da história do país já não existem mais.
Para além do impacto gerado pelas cenas do teto desabando, pela falta de água nos hidrantes e pelo choro das pessoas tentando salvar o que fosse possível, esse incêndio mostra-se alarmante ao menos em três esferas distintas: a da memória nacional, a do ensino/pesquisa e a da política pública voltada à promoção e salvaguarda da cultura e de nosso patrimônio.
Em relação à memória, é possível que tenhamos perdido peças únicas e essenciais para uma compreensão mais alargada não só de nossa história enquanto nação, mas também de substratos simbólicos que dizem muito sobre toda humanidade. É o caso das coleções de múmias egípcias e pré-colombianas, dos fragmentos encontrados nas escavações de Pompeia e Herculano, das máscaras feitas pelos índios Ticunas, dos cintos rituais do povo Munduruku, dos registros de línguas indígenas que não possuem mais falantes vivos e do crânio de Luzia, a “primeira brasileira”.
Naquilo que tange ao ensino e à pesquisa, o Museu nacional, nossa primeira instituição científica, mantinha 6 (seis) cursos de pós-graduação de reconhecida importância nacional e internacional vinculados às áreas de antropologia social, arqueologia, botânica, zoologia e linguística. No momento em que esse texto é redigido, cerca de 89 docentes e mais de 500 alunos de mestrado e doutorado lamentam e sentem-se órfãos dos trabalhos que vinham desenvolvendo. Isso porque, junto com a redução significativa do acervo, grande parte do espaço físico destinado à realização das pesquisas, como laboratórios e salas de aula, bem como cadernos de campo, entrevistas, fotografias e trabalhos produzidos desde os anos de 1960 já não existem mais.
Por fim, não podemos negligenciar que esse incêndio acaba por refletir o descaso generalizado e deliberado com que nossos governantes tratam a área da cultura, em especial nossas instituições de memória e de salvaguarda do patrimônio. Só para exemplificar, à destruição do Museu Nacional soma-se o incêndio do Instituto Butantã (2010), do Memorial da América Latina (2013) e do Museu da Língua Portuguesa (2015). De forma sintomática, mais do que acenar para a escassez de investimentos, a recorrência desses acontecimentos desvela estratégias intencionais de desvincular o povo brasileiro de sua história, mantendo grande parte da população ignorante sobre seu passado e à margem da cidadania.
Diante de tal quadro, o que podemos fazer para que outros museus, arquivos, bibliotecas, sítios arqueológicos, etc., não tenham o mesmo destino? De imediato, precisamos refletir e reivindicar ações concretas que possam garantir tanto a preservação quanto o acesso social e público a esses espaços de recordação e de representação da nossa memória/história. Isso porque, e é fundamental que essa prerrogativa se dissemine, vestígios culturais não são destruídos apenas pelo fogo, eles também são obliterados pela indiferença, pelo descaso, pela falta de investimentos, de visibilidade e pela conivência do nosso silêncio.
Fabrício Silveira
Professor da Escola de Ciências da Informação da UFMG