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Marília Mendonça: o desaparecimento precoce de uma grande estrela

(Foto: Reprodução)

Nosso Radar de Celebridades, aqui no Grislab, havia registrado um perfil de Marília Mendonça em março de 2020, encontrando a cantora no auge de sua carreira. Voltamos agora a falar dela, registrando – junto com milhões de brasileiros – nosso pesar pelo seu falecimento no dia 5 de novembro de 2021. Sua morte ocorreu pela queda de um avião que a transportava para um show na cidade de Caratinga, Minas Gerais.

Junto com Marília perderam a vida mais quatro pessoas: o piloto do avião, Geraldo Martins de Medeiro, o copiloto, Tarciso Pessoa Viana, seu produtor, Henrique Ribeiro, e o tio e assessor de Marília, Abicieli Silveira Dias Filho.

 

Começou a compor aos 12 anos

Marília Dias Mendonça nasceu em 22 de junho de 1995 em Goiás, estado de onde vieram inúmeras estrelas do sertanejo, como Zezé Di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo, Bruno & Marrone, Cristiano Araújo, Jorge & Mateus e João Neto & Frederico. A cidade natal da cantora é Cristanópolis, a 90 km de Goiânia. Mas foi na capital que ela cresceu, ao lado da mãe e do irmão mais novo.

Sua mãe a levava desde cedo para cantar na igreja evangélica da qual a família participava, e seu avô incentivou que ela aprendesse a tocar violão. Mas na adolescência, a cantora tinha vergonha da sua voz grave. Foi como compositora que ela começou a se destacar. Marília tinha apenas 12 anos de idade quando escreveu a sua primeira composição de sucesso. Foi a música “Minha Herança”, interpretada por João Neto & Frederico. Ela tinha 16 anos de idade quando vendeu a música para eles. Também gravaram suas canções Henrique & Juliano (“Cuida Bem Dela”), Jorge & Mateus, Cristiano Araújo, Wesley Safadão, entre outros.

O primeiro grande sucesso de Marília Mendonça como cantora foi “Infiel”, lançado em 2016. Ela tinha 21 anos de idade. A canção ficou em 2º lugar nas paradas brasileiras. Depois, ela teve 5 músicas em 1º lugar: “Eu Sei de Cor”, “Amante Não Tem Lar”, “De Quem é a Culpa?”, “Ausência” e “Graveto”. Além de mais outras 11 canções no top 10 das paradas do país, entre elas, “Bem Pior Que Eu” e “Todo Mundo Vai Sofrer”.

Ela foi a cantora mais ouvida do Brasil no Spotify em 2019 e 2020. Ganhou o Grammy Latino de melhor álbum de música sertaneja de 2019 por “Todos Os Cantos, Vol. 1 (Ao Vivo)”. Para as gravações dos videoclipes das músicas desse álbum, a cantora realizou um projeto ousado: foi de surpresa a cada uma das capitais do país realizar um show gratuito anunciado de última hora. Em cada capital, ela gravou o vídeo de uma canção. A cantora teve a live mais vista do planeta, em 2020, com 3,31 milhões de visualizações. Em suas lives, introduziu a tradução de Libras, promovendo inclusão da comunidade surda e incentivando outros artistas a fazer o mesmo. Ela havia gravado um álbum e estava para começar uma turnê com a dupla Maiara & Maraisa (com quem formava o trio Patroas).

 

No sertanejo, planta o feminejo

Quando começou a se destacar como cantora, ela não se tornou mais uma entre as estrelas do sertanejo, mas impulsionou uma revolução ao se tornar o maior expoente do movimento feminejo. Ele significou não só uma forma de inserção nesse nicho musical historicamente tão masculino por parte de cantoras femininas, como também a introdução de um novo olhar sobre as temáticas cantadas pelo sertanejo, até então muito invisibilizado. A música sertaneja já contou com grandes nomes femininos em sua história, como as Irmãs Castro, Inezita Barroso, Roberta Miranda, Paula Fernandes, Thaeme (da dupla com Thiago) e Maria Cecília (da dupla com Rodolfo). Mas com Marília Mendonça, o sertanejo foi tomado por intérpretes femininas que atingiram as principais posições das paradas musicais. Entre elas, Maiara & Maraisa, Simone & Simaria, Naiara Azevedo e Yasmin Santos.

Com músicas sobre infidelidade e términos, trazendo o ponto de vista da mulher traída e também o da amante, Marília ficou conhecida como Rainha da Sofrência. Ela não é a única a cantar sobre esse tipo de tema que envolve sofrimento por relacionamentos mal sucedidos. Na verdade, essa tem sido a tônica de grande parte das músicas sertanejas nos últimos anos. Mas o título de Rainha mostra que ela soube condensar esse sentimento como ninguém. Isso revela o quanto Marília era a representação do sertanejo atual. Esse estilo musical que move a paixão de milhões de brasileiros há décadas, tendo se tornado há muito tempo o mais popular no país. Não há dúvidas, portanto, da importância e do legado dela para a música nacional.

 

Uma mulher posicionada

Em meio a um grupo de cantores de um nicho que apoiou fortemente a candidatura de Bolsonaro, nas eleições de 2018, Marília Mendonça se distanciou dos colegas ao gravar um vídeo para a campanha #EleNão, contrária à candidatura do atual presidente. Ela chamou a postura dele de retrocesso e disse que as mulheres precisavam se posicionar contra ele: “Eu sou uma mulher que lutou bastante dentro das outras mulheres do sertanejo para quebrar todo o preconceito de um mercado completamente machista, e com certeza Marília Mendonça é #EleNão”. A cantora foi atacada e ameaçada por causa da postagem, bem como sua família, e acabou apagando o vídeo. Esse acontecimento mostra que ela tinha um posicionamento progressista que destoava (e ainda destoa) desse setor musical. Porém, evidencia também o conservadorismo do público desse gênero musical, mostrando os constrangimentos contidos na relação entre celebridade e audiência.

Apesar de a cantora não ter tido um discurso autointitulado feminista, ela falava do seu lugar enquanto mulher, denunciando relacionamentos abusivos e exortando a resistência ao machismo. Com isso, ela conseguia a adesão de uma parcela do público que o feminismo costuma ter mais dificuldade de alcançar, seja pela linguagem estabelecida ou por possíveis resistências a esse termo. De fato, ela própria recusava essa palavra. Em entrevista ao G1, ela disse sobre sua música: “Não acho que é feminista, e nem me considero uma.”

“Você Não Manda Em Mim”, com Maiara & Maraisa, aborda um caso de violência doméstica. Falando sobre o lançamento dessa música, a cantora disse: “Estávamos preparando um trabalho especial pra essa música de conscientização sobre a importância da denúncia contra a agressão à mulher, justamente por saber que somos referências pra muitas mulheres no Brasil, que passam todos os dias por situações parecidas e por muitas vezes se sentem desencorajadas a denunciar”. O videoclipe dessa música ainda nem havia sido lançado quando o acidente aconteceu, tendo sido liberado por Maiara & Maraisa dias depois.

Também nos esforços de combater situações de preconceito contra a mulher, a cantora lançou a música “Troca de Calçada”, que conta a história de uma prostituta lidando com o preconceito social.

 

A morte abrupta

Marília morreu com 26 anos de idade, deixando um filho que ainda não completou dois anos. As causas do acidente estão sendo investigadas, e ainda não há indícios da ocorrência de problemas técnicos ou falhas humanas.

Como era de se esperar, o acidente foi amplamente noticiado. Um vídeo registrado por um dos policiais militares que atuaram no resgate mostrou detalhes do início da intervenção do Corpo de Bombeiros; uma gravação ao vivo circulou nas redes sociais com imagens da retirada dos corpos (com o cuidado de elevar a câmera em alguns momentos para preservar a exposição das vítimas); as redes Globo e Record veicularam o desenrolar da ação de resgate e identificação dos corpos.

A assessoria da cantora, nos momentos iniciais, veiculou uma informação falsa, registrando o acidente, mas informando que estavam todos bem; posteriormente se desculparam pelo equívoco.

Diferentes artistas e personalidades políticas manifestaram seu pesar e prestaram homenagens à cantora, como Caetano Veloso, Mano Brown, Luís Roberto Barroso e Lula. A rede Globo veiculou um especial no domingo seguinte à tragédia com a presença de vários convidados que lembraram as músicas e as intervenções de Marília Mendonça, tais como o padre Fábio de Melo, Roberta Miranda, Paula Fernandes e João Neto & Frederico. As redes sociais transbordaram de mensagens lamentando sua morte e criticando algumas intervenções inoportunas. Entre elas, um comentário infeliz do apresentador Luciano Huck, transpirando gordofobia, e um obituário assinado pelo colunista e prof. Gustavo Alonso, na Folha de S. Paulo, que, recortado em alguns trechos pelos internautas, foi lido como preconceituoso e sofreu um forte ataque (o texto e seu autor). A morte também foi destaque no noticiário internacional, como no The New York Times e na BBC News.

É inevitável lembrarmos de outras tragédias semelhantes. Em 2015, o cantor sertanejo Cristiano Araújo morreu, aos 29 anos de idade, em um acidente de carro. Em 2019, o canto de forró Gabriel Diniz morreu, aos 28 anos de idade, também em uma queda de avião. Os membros do grupo de rock cômico Mamonas Assassinas (que tinham entre 22 e 28 anos de idade) também morreram em uma queda de avião em 1996 (há 25 anos). Todos esses cantores morreram jovens, no auge da fama e de forma trágica.

O Grislab acredita que, acima de tudo, a importância de um artista para um país se encontra na sua capacidade de afetar o público. Marília foi imensa, em números, em impacto na música nacional e na paixão despertada em uma legião de fãs que demostrou de forma contundente o seu luto nos dias seguintes ao acidente. Marília se vai e nos deixa um grande legado.

Vera França, professora titular de Comunicação Social da UFMG e coordenadora do GrisLab

Vanrochis Helbert Vieira, doutorando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH/UFSC)