Se o acontecimento possui poder de revelação e de emergência de valores e sentidos em uma sociedade, o que dizer da escolha em não acontecer? Mas o acontecimento é aquilo que se dá, que quebra o cotidiano com força de propagação… Como então pensar na possibilidade de escolher se um acontecimento vai acontecer? Bem, isso é possível na ficção.
Na novela “Amor à Vida”, atualmente ao ar no horário das 21h da Rede Globo, o autor Walcyr Carrasco prometeu uma polêmica: Gina, personagem de Carolina Casting, teria um envolvimento amoroso com Hebert, interpretado por José Wilker. Nada demais, a não ser que ambos são pai e filha, apesar de não saberem. Trocando em miúdos, um caso de incesto no horário nobre da televisão brasileira.
O acontecimento tomou os portais e publicações especializadas, prometendo poder de afetação não apenas dentro do universo ficcional (quando seria inesperado pelos outros personagens), quanto na audiência da telenovela (enquanto acontecimento programado). Mas eis que o autor desistiu.
A polêmica será então apenas sobre o relacionamento de uma filha com um ex-namorado da mãe. O incesto que não aconteceu, ou melhor, a escolha do não acontecer, diz também muito dos valores e limites de uma sociedade. Neste sentido, o “não-acontecimento” pode ser encarado como acontecimento: escolher não agir é também acontecer. E o que o poder hermenêutico do “não-acontecimento” pode nos revelar?
“Amor à Vida” apresentou até o momento uma série de momentos dramáticos extremos, acontecimentos ficcionais que transformaram a vida dos personagens da novela: sequestro e abandono de bebê, tráfico de drogas, internação manicomial forçada, sedução por vingança e também por dinheiro. Pela trama desfilam personagens sem freios morais, capazes de, por exemplo, aproveitar uma doença terminal para dar um golpe do baú. Todos estes acontecimentos foram roteirizados, filmados, exibidos. E aceitos – dentro da narrativa ficcional – pelo público.
Mas o incesto parece algo grande demais, potente demais. A possibilidade de uma relação sexual entre pai e filha estaria dentro de uma esfera do inimaginável, daquilo que não é possível nem mesmo fantasiar? A escolha em não levar adiante esta polêmica revela fronteiras que tensionam os limites de uma emissora que recentemente tem se dado alguma liberdade para ousar. A Globo não está preparada para mostrar ou nós não estamos preparados para ver?
A emissora não flutua desligada do tempo e do espaço, e uma vez inserida em nossa sociedade, suas escolhas são significativas deste diálogo constante com o público. Ao não acontecer, o incesto entre Hebert e Gina talvez tenha revelado mais sobre nossos valores do que se efetivamente tivesse ocorrido. Escolher não jogar uma bomba é muitas vezes tão forte quanto lançá-la. Em um momento de excesso de imagens, o não mostrar é um acontecimento potente. É hora de refletirmos também sobre aquilo que não queremos ver. Não é tão fácil fechar os olhos.
Foto: Divulgação Amor à Vida/TV Globo
Renné Oliveira França
Doutor em Comunicação Social pela UFMG
Pesquisador do Gris/UFMG
_________________________________________________________
Comentário
Renné tem toda razão ao dizer que o “não-acontecimento” pode ser tão revelador quanto o “acontecimento”. Talvez, os autores de novelas da Globo também concordem com essa afirmação; afinal, chamar a atenção para tabus sociais sem mostrá-los, atraindo a discussão pelo “não-acontecido”, é algo frequentemente utilizado nas tramas globais. Foi assim, por exemplo, com a relação homossexual entre duas mulheres adultas em Torre de Babel (1998); o “beijo gay” em América (2005) e no suposto incesto entre as personagens Malu (Fernanda Vasconcelos) e Bento (Marco Pigossi), em Sangue Bom (2013), ainda no ar às 19 horas.
A exceção pode ter sido Tieta (1989), cuja protagonista se envolve com seu sobrinho, o seminarista Ricardo (Cássio Gabus Mendes). A relação entre as personagens causou protesto da igreja por ser considerada incestuosa. A desculpa, normalmente usada pelos autores, de que os personagens não sabiam do seu parentesco antes do seu envolvimento não foi usada em Tieta. Mas, nesta novela, como em todas as outras cujos tabus fizeram ou ameaçaram fazer parte da trama, nenhuma das personagens envolvidas teve um final feliz.
Gilvan Araújo
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG
Pesquisador do Gris/UFMG
Em relação a temas demasiadamente “desagradáveis”, do ponto de vista de sua capacidade de gerar revolta e repulsa na audiência de uma ficção televisiva, acredito que para que eles sejam de fato abordados, é necessário, antes de mais nada, que haja, por outro lado, uma cobrança e uma pressão por parte dessa mesma audiência para que eles sejam veiculados.
Em relação à homoafetividade, por exemplo, grupos ligados ao movimento LGBT lutam para que ela seja mostrada nas telenovelas. Isso já ocorreu no SBT, em Amor e Revolução (2001), gerando mais repercussão positiva do que negativa. Mas quem gostaria de ver um incesto sendo abordado? Haveria alguma parcela da população que ao invés de ficar chocada, ficaria aliviada por estar sendo representada da maneira que gostaria na TV?
Quem de nós é a favor do incesto? Esse não-acontecimento mostra, antes de mais nada, uma das normas mais hegemônicas da nossa sociedade e como ela não está aberta para mudanças, pelo menos não ainda.