As investigações seguem, números, evidências e notícias aumentam. Nas discussões de quem acompanha, transparecem as comoções, mas também as incertezas e as suspeitas, às vezes conflitantes aos dados… O acontecimento transcorre e desvela marcas de nosso tempo.
A linha do tempo que vem se estendendo e (re)construindo o acontecimento a princípio remonta ao final de dezembro com uma “doença misteriosa” no estado, relacionada à internação de oito pessoas com a mesma evolução de sintomas de intoxicação. As primeiras correlações entre o estado desses pacientes e o consumo da cerveja Belorizontina foram feitas por suas próprias famílias, através de pesquisas informais encabeçadas pela farmacêutica Camila Dermatini, filha da vítima que morreu primeiro (em 07 de janeiro).
Boatos iniciais que surgiram nas redes sociais foram rechaçados pela cervejaria mineira Backer, enquadrados como tentativa de difamação e frenagem de sua ascensão no mercado. As informações levantadas pelas famílias, no entanto, serviram de ponto de partida para a investigação que atualmente trabalha com 54 lotes contaminados de 12 diferentes cervejas da marca, 31 casos de intoxicação e outras seis mortes suspeitas.
Não foram poucos os eventos e informações adicionados à rede de sentidos e hipóteses, por vezes até conflitantes, que configuram o acontecimento.
A substância responsável pela intoxicação que acometeu às vítimas é o dietilenoglicol e sua contaminação na água usada na fabricação das cervejas foi confirmada em 15 de janeiro pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. A Backer declarou não usar tal produto, mas sim monoetilenoglicol, o que fez surgir a hipótese de vazamento — que explicaria inclusive a transformação química da substância mencionada em dietilenoglicol.*
Dois desdobramentos do acontecimento são importantes: a alegação de falta de assistência da Backer às vítimas e seus familiares e revisões de prontuário de pacientes (desde 2018) que apresentavam sintomas semelhantes e seus diagnósticos não tinham sido conclusivos à época. Familiares lutam para que as investigações e, portanto, a própria linha do tempo que organiza o acontecimento sejam ampliadas.
Nas redes sociais, especialmente no perfil do Instagram da cervejaria, expõem-se diferentes comoções e solidarizações; evidências, suspeitas e hipóteses conspiratórias se chocam, por vezes sob troca de farpas.
Fato é que o caso em questão dá a ver características mais gerais de nossos tempos. Neles, duvidar e suspeitar têm sua importância — científica, democrática e, certamente, para a formação pública de sentidos em torno de acontecimentos. Mas exigem senso e ética. Neles, duvidar e suspeitar têm sido instrumento de luta e pressão por justiça; mas também de desonestidade e desinformação.
É problema dos nossos tempos a tendência de que as pessoas vão e as marcas e organizações ficam. É como tem sido, mas até que ponto é o “natural” do capitalismo? Certo é que essa realidade é imposta a vítimas e familiares de forma cruel demais em se tratando das últimas “tragédias” no país — algo surreais para o restante da sociedade, como no caso dos rompimentos de barragens.
Tirá-las do plano do surreal e trazer para o do real — do fato verdadeiro e digno de história e justiça, foi-me ensinado — é responsabilidade coletiva de construção de memória.
* Nos processos de resfriamento da cerveja nas fábricas, água fria com tais substâncias anticongelantes pode ser usada, mas circula somente em serpentinas, isto é, jamais deve entrar em contato direto com a cerveja, como o próprio acontecimento torna óbvio.
Samuel Silveira, Apoio Técnico do Gris e bacharel em Comunicação Social pela UFMG